FREUD E ABRINCADEIRA INFANTIL – FORT-DA
FREUD, Sigmund. (1920). Além do
princípio do prazer. Obras Psicológicas de Sigmund Freud; In: Freud online. Disponível em: http://www.freudonline.com.br/livros/volume-18/vol-xviii-1-alem-do-principio-de-prazer-1920/ Acesso em 28/02/2013.
Nesse ponto, proponho
abandonarmos o obscuro e melancólico tema da neurose traumática, e passar a
examinar o método de funcionamento empregado pelo aparelho mental em uma de
suas primeiras atividades normais; quero referir-me à brincadeira
das crianças.
As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças foram ainda recentemente
resumidas e discutidas do ponto de vista psicanalítico por Pfeifer (1919), a
cujo artigo remeto meus leitores. Essas teorias esforçam-se por descobrir os
motivos que levam as crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro
plano o motivo econômico, a consideração da produção de prazer
envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenômenos, pude,
através de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lançar certa luz sobre
a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e
inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples observação passageira,
porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante algumas semanas,
e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática atividade que
ele constantemente repetia.
A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade
de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava
também uma série de sons que expressavam um significado inteligível para
aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua
única empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um ‘bom menino’. Não
incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em
certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca
chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era
bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de alimentá-lo, como também cuidava
dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito
ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e
atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos
e apanhá-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia
um longo e arrastado ‘o-o-o-ó’, acompanhado por expressão de interesse e
satisfação. Sua mãe e o autor do presente relato concordaram em achar que isso
não constituía uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã ‘fort‘.
Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino
fazia de seus brinquedos, era brincar de ‘ir embora’ com eles. Certo dia, fiz
uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de
madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera
puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se
fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita
perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira
que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino
proferia seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora da cama
novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da‘
(‘ali’). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno.
Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente
repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior
se ligava ao segundo ato.
A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande
realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à
satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar.
Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o
desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance. É
naturalmente indiferente, do ponto de vista de ajuizar a natureza efetiva do
jogo, saber se a própria criança o inventara ou o tirara de alguma sugestão
externa. Nosso interesse se dirige para outro ponto. A criança não pode ter
sentido a partida da mãe como algo agradável ou mesmo indiferente. Como, então,
a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o
princípio de prazer? Talvez se possa responder que a partida dela tinha de ser
encenada como preliminar necessária a seu alegre retorno, e que neste último
residia o verdadeiro propósito do jogo. Mas contra isso deve-se levar em conta
o fato observado de o primeiro ato, o da partida, ser encenado como um jogo em
si mesmo, e com muito mais freqüência do que o episódio na íntegra, com seu
final agradável.
Nenhuma decisão certa pode ser alcançada pela análise de um caso isolado como
esse. De um ponto de vista não preconcebido, fica-se com a impressão de que a
criança transformou sua experiência em jogo devido a outro motivo. No início,
achava-se numa situação passiva, era dominada pela experiência;
repetindo-a, porém, por mais desagradável que fosse, como jogo, assumia papel
ativo. Esses esforços podem ser atribuídos a um instinto de dominação que
atuava independentemente de a lembrança em si mesma ser agradável ou não. Mas
uma outra interpretação ainda pode ser tentada. Jogar longe o objeto, de
maneira a que fosse ‘embora’, poderia satisfazer um impulso da criança,
suprimido na vida real, de vingar-se da mãe por afastar-se dela. Nesse caso,
possuiria significado desafiador: ‘Pois bem, então: vá embora! Não preciso de
você. Sou eu que estou mandando você embora.’ Um ano mais tarde, o mesmo menino
que eu observara em seu primeiro jogo, costumava agarrar um brinquedo, se
estava zangado com este, e jogá-lo ao chão, exclamando: ‘Vá para a frente!’
Escutara nessa época que o pai ausente se encontrava ‘na frente (de batalha)’,
e o menino estava longe de lamentar sua ausência, pelo contrário, deixava
bastante claro que não tinha desejo de ser perturbado em sua posse exclusiva da
mãe. Conhecemos outras crianças que gostavam de expressar impulsos hostis
semelhantes lançando longe de si objetos, em vez de pessoas. Assim, ficamos em
dúvida quanto a saber se o impulso para elaborar na mente alguma experiência de
dominação, de modo a tornar-se senhor dela, pode encontrar expressão como um
evento primário e independentemente do princípio de prazer. Isso porque, no
caso que acabamos de estudar, a criança, afinal de contas, só foi capaz de
repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a repetição trazia
consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais direta.
Não seremos auxiliados em nossa hesitação entre esses dois pontos de vista por
outras considerações sobre brincadeiras infantis. É claro que em suas
brincadeiras as crianças repetem tudo que lhes causou uma grande impressão na
vida real, e assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão,
tornando-se, por assim dizer, senhoras da situação. Por outro lado, porém, é
óbvio que todas as suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as
domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas
crescidas fazem. Pode-se também observar que a natureza desagradável de uma
experiência nem sempre a torna inapropriada para a brincadeira. Se o médico
examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma pequena intervenção,
podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras experiências serão
tema da próxima brincadeira; contudo, não devemos, quanto a isso, desprezar o
fato de existir uma produção de prazer provinda de outra fonte. Quando a
criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere
a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa
maneira, vinga-se num substituto.
Todavia, decorre desse exame que não há necessidade de supor a existência de um
instinto imitativo especial para fornecer um motivo para a brincadeira.
Finalmente, em acréscimo, pode-se lembrar que a representação e a imitação
artísticas efetuadas por adultos, as quais, diferentemente daquelas das
crianças, se dirigem a uma audiência, não poupam aos espectadores (como na
tragédia, por exemplo) as mais penosas experiências, e, no entanto, podem ser
por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso constitui prova convincente
de que, mesmo sob a dominância do princípio de prazer, há maneiras e meios
suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser
rememorado e elaborado na mente. A consideração desses casos e situações, que
têm a produção de prazer como seu resultado final, deve ser empreendida por
algum sistema de estética com uma abordagem econômica a seu tema geral. Eles
não têm utilidade para nossos fins, pois pressupõem a
existência e a dominância do princípio de prazer; não fornecem provas do
funcionamento de tendências além do princípio de prazer, ou
seja, de tendências mais primitivas do que ele e dele independentes.
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