SOBRE MEU PAI
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-90/historia-pessoal/sobre-meu-pai
Para mim
foi impossível durante vinte anos nomear sua doença
por SAULO
SZINKARUK BARBOSA
Era um
ritual que Roberto repetia com frequência. Vestia meias grossas, calças de lã,
camiseta, camisa, pulôver de gola em V e sobretudo. Deitava-se sobre a colcha
de chenile que cobria a cama feita. Cruzava as mãos sobre o peito e assim
permanecia. Totalmente imóvel, não fossem os olhos a perscrutar ansiosos o teto
do quarto, como quem tenta identificar com a visão o barulho que os ouvidos estão
esperando. Quando sua mulher perguntava o que estava fazendo, a resposta vinha
firme, com convicção: “Estou pronto para a guerra.”
E não
adiantava ela lhe dizer que não havia guerra nenhuma, ou que era verão e tanta
roupa só podia fazer mal. Porque Roberto Oliveira Barbosa, meu pai, era
esquizofrênico.
Hoje,
dizer isso assim, com todas as letras, é até fácil. Mas durante os primeiros
vinte anos da minha vida foi impossível. Em parte porque, embora desde cedo
tivessem me dito que meu pai era doente e que eu precisava entender, ninguém
nunca me contou o que ele tinha, nem se algum dia se curaria. Não que minha
família fosse relapsa comigo ou com meu irmão mais novo, ignorando as
consequências que a esquizofrenia do nosso pai poderia nos causar. Apenas foi o
jeito que minha mãe e meus avós paternos encontraram para lidar com a situação.
Um padrão de comportamento que desde cedo aprendi a replicar, e que de certo
modo explica por que demorei tanto para encarar os fatos: a gente ia levando,
tentando deixar tudo o mais normal possível, contornando as crises da doença
com paciência, silenciando e baixando os olhos quando os delírios incluíam
acusações descabidas ou frases que doíam, e nunca, nunca discutíamos o problema
depois que o pior passava. Era no silêncio cúmplice e na rotina que se
restabelecia – um almoço sem incidentes, uma tarde de chimarrão e conversa
fiada – que encontrávamos o equilíbrio para aguentar firme e seguir adiante.
É verdade
que as crises mais intensas, ao que me lembre, eram esparsas. A medicação
mantinha meu pai consideravelmente lúcido e coerente boa parte do tempo, ainda
que ele não fosse capaz de trabalhar ou se envolver em alguma tarefa que
exigisse comprometimento. Quem não soubesse da esquizofrenia podia facilmente
pensar que se tratava de um sujeito na plenitude das suas faculdades mentais.
Um pouco calado, talvez, mas nada além disso. Era preciso um contato mais
demorado para perceber as distorções do cérebro doente, que em geral surgiam em
raciocínios e conclusões estabelecidas a partir de lógicas muito particulares.
Lembro
uma ocasião em que estávamos almoçando na casa dos meus avós e meu pai, do
nada, sugeriu seriamente que todos rompêssemos com um parente distante. Não
fizemos nenhuma pergunta – conhecíamos exatamente aquele tipo de situação. Ele
explicou mesmo assim. Disse que certa vez estava andando na rua com algumas
pessoas e que, quando uma delas mencionou o tal parente, ele tropeçou. Era
evidente, portanto, que o sujeito não era boa pessoa e que devíamos evitá-lo.
Situações assim eram bastante frequentes, tanto que todos sabíamos que o melhor
era ignorar, logo ele esqueceria e tudo seguiria seu curso.
Sem a
medicação, porém, ou quando por algum motivo ela era trocada ou tinha a dosagem
ajustada, a coisa mudava de figura. Aí, sim, precisávamos tratar com uma pessoa
sem nenhuma capacidade de discernimento. Felizmente meu pai não era violento ou
autodestrutivo. Suas atitudes nas crises mais fortes eram apenas excêntricas e
embaraçosas: cobria os móveis da casa com lençóis porque achava que eles
estavam com frio; andava pelas ruas a pé como se estivesse de carro,
respeitando as mãos do trânsito; conversava efusivamente sozinho, com o cenho
franzido e as mãos agitadas; elucubrava projetos sem sentido. Certa feita
cismou que deveria trocar seu nome para Vitoffbar, sigla que criou juntando as
primeiras letras de todos os sobrenomes da árvore genealógica da família.
Mesmo
assim, e por mais que as crises me envergonhassem, nunca procurei esconder meu
pai. Meus amigos da rua e colegas de colégio frequentavam minha casa. Quando
éramos mais novos, eles faziam perguntas: “O que teu pai faz?”, “Ele está de
férias?”, “Por que teu pai está em casa a essa hora?” Eu respondia que ele
cuidava dos negócios da família; meu irmão preferia dizer que ele era advogado.
Depois que entramos na adolescência, as perguntas cessaram. Aos poucos meus
amigos compreenderam a situação, ou foram alertados por seus pais. De mim,
nunca nenhum deles ouviu nada. Eu ainda levaria muitos anos para ser capaz de
falar sobre o assunto com alguém.
A esquizofrenia é uma doença que a medicina tenta
entender. Atualmente, acredita-se que sua causa esteja numa combinação de
fatores genéticos e comportamentais, como o ambiente familiar e
experiências traumáticas. Na minha família paterna, o histórico de transtornos
mentais é considerável, se bem que mal documentado e raramente diagnosticado.
Já ouvi histórias sobre meu bisavô, avô do meu pai, ser “meio esquisito”, mas
daí a saber do que exatamente ele sofria vai uma longa distância. São
lembranças puídas pelo tempo, de uma época em que o máximo de precisão a que o
médico chegava era afirmar que o paciente “sofria dos nervos”. Ouvi também
relatos de primos cujas vidas foram de alguma forma desviadas do curso normal
por algum tipo de impedimento mental.
A
história do meu pai segue o que a literatura médica define como padrão da
esquizofrenia. A vida corre sem incidentes até o início da fase adulta, quando
se iniciam as crises. Após uma infância e adolescência normais, meu pai saiu de
Santo Ângelo, município com pouco mais de 70 mil habitantes onde havia
crescido, para fazer faculdade em Santa Maria, uma cidade universitária
agitada, quase quatro vezes maior que sua terra natal. Era começo dos anos 70 e
ele tinha 18 anos. Foi quando ocorreram as primeiras manifestações.
Há quem
credite a explosão do gene adormecido ao rompimento com um ambiente familiar
superprotetor. Outros atribuem ao abuso de drogas – comportamento que a
medicina considera um gatilho possível – dos primeiros semestres na
universidade. Minha avó, que até hoje rejeita o diagnóstico oficial, especula
que tudo começou quando ele bateu a cabeça durante uma viagem de ônibus, num
solavanco mais vigoroso do veículo. O que se sabe ao certo é o que aconteceu a
partir daí: vieram crises e mais crises. Meu pai faltava a boa parte das aulas.
Sumia por dias a fio sem dar notícias, e quando voltava aparecia com os olhos
esbugalhados, tremendo e dizendo coisas sem sentido. Era uma visão assustadora
para minha família. Um terror amplificado pela ignorância de não fazer ideia do
que estava acontecendo com ele, tão normal e estudioso até pouco tempo. Às
crises se intercalavam tentativas de retomada da vida. Foram três faculdades
iniciadas na Universidade Federal de Santa Maria, nenhuma jamais concluída; um
período no curso de formação de tenentes do Exército; um punhado de
empregos com amigos da família. Alguns anos mais tarde, de volta a Santo
Ângelo, ele ainda tentou estudar direito, mas não concluiu o curso. Foi seu
derradeiro esforço. Pelos anos seguintes, meus pais, meu irmão e eu vivemos da
renda de imóveis da família, administrados com surpreendente tino por meu pai.
Ele só
não desistiu da música. Tocava violão. Cresci ouvindo-o dedilhar Beatles,
Roberto Carlos e Renato e Seus Blue Caps. Cantava muito bem e sabia ser o
centro das atenções. As festas de família em que empunhava o instrumento e
soltava a voz sempre me pareceram ser seus momentos mais felizes, quando de
alguma forma ele conseguia fazer com que as coisas dessem certo.
Ainda
assim, está ligada à música uma das lembranças mais vívidas que tenho da sua
esquizofrenia. Eu era adolescente e estava aprendendo a tocar violão. Já
conseguia executar algumas canções, porém era incapaz de afinar o instrumento.
Pedi a meu pai que o fizesse. Ele sentou ao meu lado, na cama, e começou a
arpejar as cordas com o polegar direito, enquanto girava as tarraxas com a
outra mão. Estranhei os gestos dele, tocando todas as cordas abertas, isto é,
sem usar a mão esquerda. Em geral, tocam-se as cordas aos pares na quinta casa
do braço, descendo do bordão até a prima, e afinando uma pela outra (quinta
pela sexta, quarta pela quinta etc.). Mas aquele era um momento tão raro – nós
dois compartilhando alguma coisa – que não prestei muita atenção ao método. Fiquei
apenas ouvindo o que meu pai me dizia enquanto ajustava o instrumento.
Ele tinha
acabado de tomar banho e cheirava a sabonete, um odor ácido e frutado. Falava
de teoria e técnica musical. A formação dos acordes, o arpejo, o dedilhado. Um
pai ensinando algo ao filho, um momento tão banal, tão comum, e justamente por
isso tão especial para mim. Quando ele me entregou o instrumento, armei um dó
maior com a mão esquerda e toquei confiante. O violão ecoou um som tão caótico
que até meu ouvido inexperiente percebeu que havia algo muito errado. Testei um
lá maior. De novo, dissonância. Fiquei atordoado. Eu já tinha visto meu pai
afinar um violão dúzias de vezes. E no entanto ele havia passado dez minutos
regulando aquelas cordas que agora pareciam refletir a mente dele: um todo
desajustado de onde é impossível extrair alguma coerência. Nem mesmo quando
toquei os acordes e produzi sons indecifráveis ele percebeu o que estava
acontecendo.
Em
segundos, vi perplexo ruir nosso momento pai e filho. Eu sabia que não ia
conseguir falar nada para ele. Temia o terreno em que pisaríamos se eu dissesse
o óbvio: “Pai, não tá afinado.” Eu não seria capaz de esfacelar a normalidade
daquele momento, ainda que ela fosse só aparente e, afinal, ilusória. Meu pai
se levantou e saiu. Fiquei sozinho na cama, com um violão desafinado e um
cheiro de sabonete que nunca mais esqueci.
Meu irmão e eu gostávamos de ir aos jogos do Passo
Fundo, time de futebol da cidade onde nossa família, incluindo meus avós
paternos, foi morar no começo dos anos 90. Um dia, para nossa grande surpresa,
o pai quis ir junto. Lembro como meu irmão, que na época devia ter uns 9, 10
anos, ficou empolgado. Em geral quem nos acompanhava em qualquer atividade, dos
deveres da escola até comprar doces na esquina, era nossa mãe ou avô, que
sempre foi muito próximo e fez o possível para suprir o papel da figura
masculina na nossa criação. Aos jogos, íamos somente meu irmão e eu. Mas
naquele dia ele foi com a gente. Chegamos ao estádio e nos sentamos no concreto
morno da arquibancada, alinhados com o meio de campo. O dia estava quente e não
nos importamos com o sol que nos fazia apertar as pálpebras. Era um momento
estranho. Feliz mas estranho, pois não tínhamos muita intimidade com nosso pai.
Como ele varava as madrugadas e dormia boa parte do dia, nossas rotinas quase
não se encontravam.
Acho que
mal haviam se passado quinze minutos de jogo quando ele disse que queria ir
embora. Ficamos sem reação. Ele tentava se desculpar, dizendo que infelizmente
não tinha como seguir ali com a gente. Começou a descer a arquibancada, sem
olhar para trás, a cada passo ficando menor aos nossos olhos. Ele já ia longe
quando meu irmão conseguiu expressar a raiva que estava sentindo. Xingava e
amaldiçoava com a voz embargada, segurando as lágrimas como quem sabe que negar
o choro a alguém às vezes é a única vingança possível. Não senti nada. Talvez
por estar acostumado a jamais criar expectativas positivas referentes a algo
que envolvesse meu pai, como uma criança que sabe que seu balão sempre vai
estourar antes de encher. Ou, por ser três anos mais velho, eu tivesse
maturidade suficiente para entender que havia uma doença maldita dentro da
cabeça dele, um parasita voraz que envenenava e consumia seu cérebro,
impedindo que ele fizesse o que mais queria: ser um pai de verdade.
É
exatamente aí que está o sofrimento mais devastador dessa doença: não existe
nenhum parasita. Nunca houve uma separação entre o cérebro sadio e o bicho que
o contaminava. A esquizofrenia e a mente do meu pai eram uma coisa só,
indissociáveis. E por isso eu nunca soube, nem nunca vou saber – de tudo que
ele me disse e fez, de tudo que deixou de me dizer e fazer –, quando ele era
ele mesmo e quando estava sob influência da doença. No dia em que disse que
sentia muito orgulho de mim, sentia mesmo isso ou estava apenas tendo um
delírio, imaginando um filho que não era o dele? Como posso considerar
verdadeira e sincera uma lembrança se desde pequeno fui ensinado a julgar seus
atos como frutos de uma mente doente?
No outono de 2003, minha mãe saiu de casa. Eu soube
por telefone – àquela altura, já estava na faculdade em Porto Alegre havia
quase dois anos. Nessa mesma ligação, pela primeira vez alguém me disse alguma
coisa concreta sobre a doença. “Teu pai tem esquizofrenia. Me sinto muito
infeliz e sozinha”, ela falou. A sinceridade brutal foi a forma que encontrou
para tourear o medo de que meu irmão e eu ficássemos contra ela. Isso não
aconteceu. Meu pai não era culpado da doença, tampouco minha mãe. Na verdade, o
que senti depois daquele telefonema foi uma enorme gratidão por ela ter
suportado tanto tempo. Por ter esperado até que ficássemos adultos para ir
atrás da sua felicidade. Minha mãe casou aos 19 anos, grávida de mim. Jovem e
ingênua, achava que o comportamento excêntrico do meu pai era resultado das
muitas horas de estudo. Nunca lhe passou pela cabeça perguntar por que aquele
homem dez anos mais velho não conseguia concluir nenhuma faculdade. Como meus
avós jamais se imiscuíram na vida sentimental do filho, minha mãe casou sem
saber que meu pai era esquizofrênico.
Pouco
mais de um mês depois da partida da minha mãe, meu pai teve um mal-estar
estomacal violento. A suspeita primeiro recaiu sobre uma lata de pêssegos em
calda aberta havia muitos dias. Medicado, ele melhorou, mas ao longo das
semanas seguintes as indisposições foram ficando mais frequentes, até que o
médico pediu exames mais detalhados. Só então o diagnóstico surgiu: um tumor no
intestino, grande o suficiente para praticamente bloquear
o processo de digestão.
o processo de digestão.
Meu pai
foi operado para remover o tumor e passou por um período de quimioterapia.
Mudou-se para a casa dos meus avós, emagreceu, parou de fumar. Não perdeu o
cabelo, mas padeceu os enjoos do tratamento. Só fui visitá-lo depois de algumas
semanas. De algum modo, eu tinha construído uma redoma em Porto Alegre, um
espaço onde a fugacidade do convívio com meu pai me desobrigava de fingir que a
doença não existia. Foi difícil destruir esse pequeno ecossistema de ilusão e
encarar que agora eram dois os males a devastar a vida daquele homem.
Daquela
época data um texto em que ele relata uma série de revezes na família. Com sua
caligrafia impecável, ele narra a partida da minha mãe, a descoberta e o
tratamento do câncer, entre incidentes menores como uma batida de carro em que
minha avó quebrou o braço, uma mordida que meu avô levou da cachorrinha da
família etc. No fim, conclui: “Não sei por que tanta perseguição.”
Guardo
esse texto comigo. Sempre que o leio, me lembro de uma cena de Os Leões de
Okavango, documentário do canal National Geographic sobre uma família de
leões que perde o patriarca em uma disputa territorial com um grupo da mesma
espécie e é forçada a procurar outro lugar para viver. Sem parceiro e com três
filhotes pequenos, a leoa Ma di Tau foge sem rumo. Poucas horas depois, já viu
um dos rebentos ser devorado por um crocodilo, está exausta, sem abrigo nem
comida para dar aos dois sobreviventes, e ainda precisa permanecer vigilante o
tempo todo. Nesse momento, ouvimos a voz grave do ator Jeremy Irons, narrador
do filme, anunciar mais ou menos o seguinte: “E mais um dia amanhece no delta
do rio Okavango, totalmente alheio ao sofrimento de Ma di Tau.” Não importa se
é Ma di Tau, meu pai, eu. A natureza não dá mole: não tem piedade ou comiseração,
não avalia quanto sofrimento cada um pode suportar. Depois de um dia que se foi
chega outro, e depois mais outro e ainda outro, independentemente da nossa
vontade de que o tempo retorne, ou congele, ou deixe de acontecer.
Em algum momento no começo dos anos 90, meu pai
decidiu suspender a medicação. Minha mãe, ciente de que a vida normal seria
inviável, passou a moer o comprimido de Haldol e misturar no suco que servia a
ele no almoço. Nós, crianças ainda, não percebíamos como era curioso ele ter um
copo separado, em que ninguém podia tocar. Minha mãe conta que quando meu irmão
ou eu reclamávamos que o suco estava muito azedo, ou aguado, meu pai
gentilmente oferecia o dele. Eram pequenos momentos de desespero para ela. Para
acabar com situações assim, um dia ela nos contou o que vinha acontecendo nos
últimos meses. Enfatizou que sob hipótese alguma deveríamos beber um gole que
fosse, mesmo que o pai insistisse. Mais alguns meses se passaram e ela nos
chamou para dizer que revelaria a ele o truque do remédio no suco. Estava
nervosa com a conversa, com a possível reação dele. Para alívio de todos, ele
entendeu, agradeceu e voltou a se medicar normalmente.
Foi
também nessa época que meu irmão e eu passamos por uma avaliação com uma
psicóloga. Íamos ao consultório e fazíamos desenhos, jogávamos ou simplesmente
conversávamos. Ela concluiu que estava tudo bem com a gente, não identificou
nenhum traço ou propensão para a esquizofrenia.
Apesar de
tudo, tive uma infância feliz. Meu irmão e eu crescemos muito próximos, com
muitos amigos. Meus avós paternos foram presenças constantes – era para a casa
deles que eu ia todos os finais de semana e durante as férias. Minha mãe sempre
foi incrível. Até hoje adoro o Natal, certamente pelas boas lembranças. Não
acho que a doença do meu pai tenha feito a minha vida difícil ou que o
sofrimento tenha me trazido uma sabedoria especial.
Três anos depois da cirurgia para retirar o tumor,
meu pai começou a reclamar de fortes dores nas pernas. Como as pontadas
irradiavam da coluna em direção aos pés, o médico logo diagnosticou um problema
no nervo ciático. Ao longo das semanas seguintes, ele passou a sentir
dificuldade em se locomover e ficava boa parte do dia na cama. Fui visitá-lo
nesse período. Estávamos no quarto que ele ocupava na casa dos meus avós; ele
deitado, eu sentado em uma cadeira aos pés da cama. Era uma tarde de começo de
inverno e o ar recendia a cobertores recém-retirados do armário. Estávamos
praticamente em silêncio. Não tínhamos muito assunto, então eu apenas ficava
ali, calado ou comentando trivialidades. Sabia que minha companhia bastava. De
repente, ele começou a chorar. Um choro desgarrado, daqueles que o sujeito fica
um tempo sem respirar e depois puxa o ar com força quase desesperada. Pensei
que estivesse sentindo muita dor e ensaiei alguma pergunta. Foi quando ele
falou: “Eu fracassei em tudo, meu filho. Em tudo. Sempre tinha alguém mais
forte que eu.”
Difícil
dizer se doeu mais perceber o quanto meu pai havia sofrido ao longo da vida ou
entender que, mesmo com a doença, ele sempre soubera que sua história tinha
sido uma sucessão de tentativas malogradas. Tentei consolá-lo. Disse que estava
enganado, que ele tinha muitas conquistas de que se orgulhar, seus filhos eram
os maiores exemplos disso – adultos independentes, íntegros como ele sempre
fora. Ao ouvir isso, se acalmou. Acenou positivamente com a cabeça enquanto
limpava as lágrimas nas costas das mãos. Então retomamos o silêncio.
Pouco
depois dessa visita, os médicos descobriram que as dores provinham de uma
metástase na região lombar da coluna, que esmagava a medula conforme ia
crescendo. Os exames apontaram ainda outro tumor semelhante, perto da cervical.
Meu pai chegou a se operar para retirar a metástase da lombar, uma cirurgia
difícil, de recuperação dolorosa e pouco efeito prático, que apenas nos
proporcionou a sensação de que havíamos tentado tudo.
A última
vez que o vi vivo foi quando mostrei a ele as fotos da minha formatura.
Precisei segurar cada uma das imagens sobre a cama, ele já não podia movimentar
os braços. Meu pai, que havia chorado semanas antes ao ver o vídeo da
cerimônia, da qual eu tinha sido o orador, dessa vez sorriu orgulhoso.
A morte
do meu pai alterou a dinâmica com que eu havia encarado sua doença a vida toda.
Não havia mais motivo para fingir normalidade em relação a nada. Meu pai agora
estava morto, era uma lembrança, e lembranças podem até mexer em feridas
antigas, mas não criam novas. Comecei a encaixar meu pai na minha história de
vida, doente como ele de fato sempre havia sido e eu nunca tinha conseguido
aceitar. Passei a falar da doença dele com os amigos, a namorada, minha mãe,
meu irmão. Aos poucos substituí em meu passado o pai que ficava em casa
cuidando dos negócios da família pelo pai medicado com Haldol.
Eu tinha quase 20 anos quando disse pela primeira
vez a frase “Meu pai é esquizofrênico”. Até dois anos antes, ao ler a bula de
um dos medicamentos dele, não tinha certeza se o diagnóstico era mesmo esse.
Estava falando ao telefone com uma amiga, colega de faculdade, sobre o genérico
tópico “problemas da vida”, e anunciei que tinha algo para contar. Um segredo
que nunca havia revelado a ninguém. Na hora, minha voz travou. Antes de dizer,
precisei me livrar dos vinte anos de bloqueio e vomitar tudo que engoli a vida
inteira fingindo que a doença não existia. Quando as palavras finalmente
saíram, fiquei esperando a reação dela. Espanto, horror ou, pior, pena? Mas ela
reagiu com naturalidade. E eu entendi que meu maior drama era apenas um drama,
o meu, e não o mais pavoroso de todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário