domingo, 20 de outubro de 2013

FREUD: "O ARTISTA É AQUELE QUE MAIS SE APROXIMA DO INCONSCIENTE E DOS LOUCOS"


http://causasperdidas.literatortura.com/2013/10/18/arthur-bispo-do-rosario-a-salvacao-pela-arte/

Arthur Bispo do Rosário: a salvação pela arte


Artista contemporâneo e sergipano reverenciado no seu tempo, Bispo foi imortalizado pela atemporalidade da arte. A arte contemporânea enseja desconstruções de concepções para a abertura do desaprendizado instigante de significações, ou seja, a arte contemporânea “não fornece respostas, ela problematiza, inquieta… Há articulações de questionamentos possibilitando pluralidade de leituras’’, evidenciando o que Bispo do Rosário ressoou com suas rupturas estéticas e perturbadoras.
Experimentou-se dentro dos muros de instituições psiquiátricas, principalmente na Colônia Juliano Moreira (diagnosticado como esquizofrênico paranoide), depois de perambular, por dias, pela Igreja da Candelária e Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, proferindo a salvação e julgamento dos vivos e mortos pela sua determinação; começando esse seu primeiro surto após ouvir vozes de anjos o consagrando como Jesus Cristo, numa data bastante simbólica; meia-noite de 24 de dezembro de 1938. Durante cerca de cinco décadas nessas instituições (entre idas e vidas, ficando ininterruptamente por uns 25 anos), Bispo imergiu na arte como forma de resistência à condenação da loucura instituída. ‘’A arte de Arthur Bispo do Rosário é um aspecto de lucidez, parte de uma necessidade’’, como disse o ator João Miguel, que interpretou o artista na peça ‘’O Bispo’’, 2001-04, em São Paulo.
Circunscrito por fissuras, o passado de Arthur Bispo é repleto de especulações, já que era negado por ele mesmo, ‘’Um dia, eu simplesmente apareci pelos braços da Virgem Maria’’, disse certa vez. Não se sabe precisamente o ano do seu nascimento, se foi 1909 ou 1911, mas a especulação majoritária mostra que Bispo necessitou alterar seu ano de nascimento para poder ingressar na Marinha, onde permaneceu, aproximadamente, dos 15 aos 23 anos.
Na Colônia Juliano Moreira, Bispo, por ter aprendido boxe no período em que foi marinheiro, estabeleceu uma cumplicidade com os funcionários da instituição, tornando-se ‘’xerife’’. Com poderes concedidos pela sua argúcia, ele repreendeu e controlou os pacientes que geraram alvoroço. Auxiliando nas tarefas cotidianas. Forjou-se de autoridade, e com isso conquistou o respeito dos funcionários e pacientes.
Quando Bispo tinha 72 anos, em 1982, o crítico de arte Frederico Moraes, organizador da exposição com artistas catalogadas pela sociedade como marginais, já que buscou expor a arte daqueles considerados ‘’inumanos’’, aglutinou o conjunto artístico de Rosário na exposição ‘’À Margem da Vida’’, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, sendo esta a primeira e única exposição com o aval do artista sergipano em vida.
A reinvenção perpassou sua obra, já que o desutilizado, descartado, o que servia só para o lixo, para Bispo, era poesia visual. Ele colocou expressão nos restos, resignificando-os nas criações surgidas de desconstruções; transfigurou objetos. Sem as convenções dos métodos das artes plásticas, Arthur se configurou, pelos eruditos das artes, como artista de vanguarda, por ser inovador de desutilidades, de forma emblemática. Ele foi o ‘’rebelde’’ dos objetos; compulsivo e obsessivo por eles, como uma forma de colecionismo, oferecendo o revesso do concebido originalmente. Bispo criou e recriou suas peças dentro do seu alojamento que mais parecia uma instalação, permeado por explosões divinas, já que se autoproclamou o messias, vendo na sua internação o reconhecimento disso. Alheio a toda estratificação da arte, sua poética era intuitiva. Sendo ‘’uma situação no mínimo instigante: a linguagem que o coloca num patamar de vanguarda é a mesma que está na base da realização artística primordial no processo civilizatório, que ocorre mediante a coleta de conchas, de penas de ave, de pedras e outros recursos rochosos.’’
Sua arte, para ele, não era classificável como arte, pois construiu universos simbólicos por obrigação divina; como salvação. Como poetizou Manoel de Barros, no Livro Sobre Nada (1996):
‘’Arthur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra é ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados, objetos mumificados, fardões de Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus’’
A complexidade da arte de Rosário leva a discussões paradoxais sobre como defini-lo – louco ou gênio? -, configurando-se conceituações simplistas, que não abarcam a dialética. ‘’Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam sempre a dois metros do chão’’, como o artista poetizou. Uma marca inextinguível da arte é a distinção e/ou junção do enquadramento de louco e/ou gênio. O mundo artístico, por vezes, recheado dessas figuras instigantes, como o artista francês Antonin Artaud (1896-1948), que articulou o ‘’Teatro da Crueldade’’ – como representação da crueldade da sociedade, do ser humano, em seu âmago -, passando por vários manicômios, durante anos, ficando 9 anos ininterruptamente Para Sigmund Freud, ‘’O artista é aquele que mais se aproxima do inconsciente e dos loucos’’. E sobre o louco disse: ‘’A formação delirante que julgamos ser uma produção patológica é, na verdade, uma tentativa de cura, um processo de reconstrução’’.
A palavra: mar fluindo nas peças ornamentadas de Bispo e seu mundo reconstruído (ou desconstruído). Tecendo palavras cheias de sentido próprio, ou revivendo pela palavra bordada a experiência do seu primeiro surto (o de 1938) altivo em sua arte, como nos mantos, estandartes… Peças que se figuraram como livros. Há em Rosário a necessidade de registros. A peça ‘’434 – como é que devo fazer um muro’’ é um pedaço de madeira inventado de palavras; uma miniatura do mundo (era frequente, em Bispo, apequenar o mundo com restos).
O brado retumbante da obra de Bispo é uma miscelânea, na qual se pode identificar uma fenda axial em grande parte de sua arte; a religiosidade. As significações atribuídas a sua vida e, conseguentemente, sua arte foram embasadas nesses arcanos da religião, como em sua peça mais famosa, o ‘’Manto da Apresentação’’, uma vestimenta ‘’sagrada’’ para ser envergada pelo artista no infalível Juízo Final. Essa peça é adornada (emanharada), entre outros aspectos, de nomes bordados, os nomes – pessoas – que seriam salvas (bordou, com certa frequência, nomes em suas peças, como modo de salvar as pessoas que o reconheciam como Jesus). Podendo-se considerar essa peça a sublimação de sua vasta poética. A morte envolveu permanentemente Bispo, mas não de maneira histérica, atormentada, e sim como a via inevitável de conexão genuína com Deus, com toda a benevolência do artista que criou para Deus.
Arthur Bispo do Rosário morreu em 1089, e seu acervo é conservado no Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, localizado onde era a instituição Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.

Revisado por Luisa Bertrami D’Angelo

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

NEUROCIÊNCIA

 

“Neurociência para tudo é bobagem”

 http://charlezine.com.br/neurociencia-para-tudo-e-bobagem/#print

Raymond Tallis
A revista Galileu entrevistou o filósofo britânico Raymmond Tallis, que critica a moda entre os cientistas de explicar qualquer aspecto do comportamento humano apenas lendo ondas cerebrais. Ter preconceito contra o tema é algo do qual ele não pode ser acusado, pois além de boa parte das suas quase 200 pesquisas tratar do cérebro, Tallis coordenou a construção do Centro de Neurociência de Manchester, na Inglaterra, e se transformou em um especialista mundialmente respeitado em doenças neurológicas em idosos.
Apesar disso, ele acha que essa conversa de “neuro” está indo longe demais. Médico, crítico literário e filósofo — e referência na Inglaterra nas três áreas —, Tallis diz que usar a atividade cerebral para explicar todos os aspectos do comportamento humano pode colaborar com um novo tipo de darwinismo social. Em seu livro Aping mankind (“Humanidade primata”, sem edição no Brasil), ele afirma ver riscos na volta da ideia, usada durante o nazismo, de que teorias científicas baseadas no cérebro podem ser usadas para formular leis e conceitos sobre ética.
Confira a entrevista na íntegra:
Por que estamos tentando explicar tudo pela neurociência?
Em parte por causa dos extraordinários avanços da área depois de mais pesquisadores terem acesso a equipamentos de ressonância magnética funcional [que tira “fotografias” da atividade do cérebro]. Eu mesmo fiz minhas contribuições para a neurociência. Só que essa evolução no entendimento do cérebro faz com que as pessoas confundam o fato de a atividade cerebral ser uma condição necessária para a consciência com a noção de que ela em si seria a própria consciência. É o que chamo de neuromania: achar que tudo que somos se deve ao cérebro e que a neuroatividade é a mesma coisa que nossa consciência.
Estamos enxergando a nossa mente como uma simples máquina?
Exatamente. Se passamos a achar que a consciência é apenas fruto de um conjunto de atividades cerebrais, basta compreender esses mecanismos para fazer nós mesmos funcionarmos melhor. Quem tem esse tipo de pensamento acha que a neurociência pode ser usada para fazer políticas sociais. Agora, dizem que não deveríamos nos preocupar com ideologia da direita ou da esquerda, mas com o que o hemisfério direito faz, ou com o que o hemisfério esquerdo coordena.
Mas há cientistas estudando drogas para mudar o comportamento, como a oxitocina.Só posso rir ao ouvir isso. Quando era estudante, a oxitocina era a substância responsável por fazer o útero contrair. Agora, as pessoas viram que ela tem efeito, em alguns roedores, de fazer eles ficarem mais fiéis aos outros. Mas não há a possibilidade de administrar essa droga e transformar todo mundo numa espécie de zumbi moral, isso é bobagem. Se parar para pensar, há um problema maior nas formas mais tradicionais de manipular a mente humana, como o álcool.
O fato de algumas substâncias poderem mudar nossas atitudes coloca em dúvida a noção de livre arbítrio. Pesquisadores dizem ser impossível encontrar evidências de que ele existe.
Eu acredito em livre arbítrio e a razão pela qual os neurocientistas não conseguem encontrá-lo é porque têm uma aproximação em terceira pessoa, ou um ponto de vista objetivo sobre isso. Eles nos vêem, inescapavelmente como objetos materiais num mundo material. Não há como ver livre arbítrio dentro disso. Se você retira o ser em primeira pessoa, a liberdade desaparece. Isso traz a questão de também um determinismo cultural. Pensadores sugerem que você só pode ter livre arbítrio se não há influências sobre você, incluindo as influências que vêm do fato que você nasceu de um jeito e não de outro. Você não escolheu ser de um jeito em particular. Na minha visão, o livre arbítrio não vem de três coisas. Uma é que nós somos, em substância, os autores das nossas ações, no sentido que elas não teriam ocorrido sem nós. A segunda, é que essas ações expressam nós mesmos. A terceira é que nós devemos refletir as causas dos eventos. Se você olha o que criamos coletivamente, nós criamos um mundo inteiro fora da natureza. Você nunca achará o livre arbítrio olhando com os instrumentos errados, que são os instrumentos da neurociência. Se você procurar pelo livre arbítrio no lugar certo, você o encontrará.
Quais são os instrumentos corretos?
Certamente não são scanners cerebrais. Para ver isso, devemos olha para o dia a dia. Se eu caio das escadas, isso claramente não é uma ação de livre-arbítrio como eu falar contigo. Se eu tenho um ataque epiléptico, isso não é uma ação livre do mesmo jeito que é escrever um livro sobre epilepsia. Nós podemos notar nos eventos que nos cercam que alguns são claramente expressão do mundo físico e biológico e outros são claramente diferentes disso. As minhas ações fazem sentido para mim dentro do tipo de pessoa que eu me tornei e que eu fiz eu mesmo me tornar por décadas. Veja o aprendizado. Eu aprendo me posicionando para adquirir os fatos com minha experiência. Animais não ensaiam as coisas, não praticam as coisas. Eles não se esforçam para adquirir comportamentos adaptativos. Simplesmente acontece. Isso é bem diferente de nós.
O que são as pseudo-disciplinas que você cita em seu livro?
Normalmente essas disciplinas são um híbrido usando “neuro” ou “evolucionário” e alguma coisa. Por exemplo, neurodireito, neuroestética, neurocrítica literária, ética evolucionária, teologia evolucionária… São pseudo porque a neurociência tem muito pouco a dizer sobre o objeto particular de seus estudos. Até quando a neurociência parece ajudar em algo relevante, é prematuro usá-la para tirar tais conclusões.
Em que situação é prematuro, por exemplo?
Pegue a neurociência usada em crítica literária. Alguns dizem que se realmente queremos entender a resposta de um leitor a um livro, precisamos olhar ao que o cérebro desse leitor faz enquanto ele lê. Você pode expor pessoas a sentenças individuais ou palavras e ver como o cérebro responde, se a palavra ativa áreas relacionadas a qualidades poéticas. Só que, na verdade, ler um livro está longe de ser uma resposta a uma série de estímulos associados com palavras. É se engajar com o mundo que está se abrindo na sua frente, questionar a posição do escritor, imaginar o que está acontecendo, ser um pouco crítico sobre a verossimilhança da história e pensar no que isso poderia te trazer sobre o mundo em geral. O leitor não é apenas um cérebro que está respondendo a algumas sucessões de estímulos discretos, é um ser que está respondendo no nível mais alto a um trabalho de arte extremamente complexo.
Mas e no futuro? Será possível ter uma conclusão só por dar uma olhada em complexos padrões cerebrais?
Quando temos um pensamento, nós conseguiremos um dia ter uma ideia completa e detalhada de qual é a atividade cerebral correspondente a um pensamento? Minha opinião é que não. Algumas vezes nesta manhã eu pensei: “Ah, vou ter uma conversa com aquele cavalheiro do Brasil”. Esse pensamento nunca tomou a mesma forma no meu cérebro duas vezes. Qualquer pensamento tem inúmeras possibilidades de formas de ser realizado dentro da nossa mente. Claramente, não há uma parte da atividade no meu cérebro correspondente a ter uma conversa com você hoje. Mas há uma questão ainda mais profunda nisso. Vamos supor que nós temos a capacidade de fazer estudos no meio da vida real, por exemplo, de alguém se sentindo enciumado porque a pessoa amada está saindo com alguém. Vamos supor também que nós possamos gravar cada pequena neuroatividade observada nessa situação real. O que temos? Nós temos a descrição de alguns neurônios sendo acionados e alguns não. Nós temos uma gigantesca base de dados de 0 ou 1 disso. Eu não tenho certeza que isso poderia me dizer qualquer coisa sobre o estado de estar apaixonado ou revelar alguma coisa para mim que eu já não soubesse da minha própria experiência ou de ler de experiências de outras pessoas.
Não seríamos capazes de interpretar esses dados?
Não nos levaria a lugar algum. Quebrar o nosso amor em partes que supostamente estariam relacionadas não nos levaria a nenhum lugar no entendimento do que é realmente o amor. É como descrever a minha jornada para um bar encontrar com meus amigos em termos de uma mecânica newtoniana, um monte de movimentos e a energia dispendida. Isso não iria mostrar nada sobre meu prazer em ver os meus amigos no bar.
Esse tipo de pensamento estaria reduzindo à nossa humanidade?
Certamente. Reducionismo está em tudo. E a manifestação mais óbvia de reducionismo está em reduzir o mundo ao redor a uma série de estímulos discretos. O que mais me impressiona são os estudos relacionados ao amor. Sandy Zacki and Ananda Spartels, por exemplo, expuseram voluntários a uma sucessão de fotos com pessoas das quais eles eram amigos. Depois, mostraram a eles fotos de pessoas pelas quais estavam apaixonados. Comparando as respostas dos cérebros aos estímulos, viram o que havia de “a mais” na paixão e concluíram que o amor era uma certa neuroatividade em determinada parte do cérebro. Só que estar apaixonado é muito mais do que responder a um estímulo físico. É algo incrivelmente complicado e o que a neurociência nos oferece sobre isso é apenas algumas sequências de áreas ativadas no cérebro ao se dar um estímulo.
Cresce o risco de determinismo biológico?
Sou ateu e humanista, mas há um trabalho espiritual e intelectual interessante que tem de ser feito para entendermos com profundidade o que somos. É um grande erro achar que, se não viemos de uma força sobrenatural como Deus, somos meramente parte da natureza, como animais. Há o risco de, quando as pessoas começam a falar de neuropolítica, pensarem em neurodireito para substituir procedimentos na corte com justiça biológica baseada em scannerscerebrais. Acho aí que entraríamos em sério perigo.
O dawinismo social está de volta?
É parte da minha preocupação essa maneira muito científica de ver a humanidade. A redução do ser humano a ondas cerebrais me lembra muito da convergência entre o pensamento pavloviano e do socialismo materialista no começo do século 20. A ideia de que nós precisaríamos de engenheiros de seres humanos, de que a ciência iria nos mostrar do que realmente somos feitos e que as nossas políticas seriam baseadas em ciência física real, etc. Esse tipo de cientificismo tem uma história muito triste no passado.
Você também critica o que chama de darwinites. O que é isso?
É a crença de que Darwin não apenas explica como o organismo do homo sapiens se transformou no que é hoje — o que certamente ele faz—, mas que explica também como somos e agimos atualmente. Há muitas pessoas que acham que, por causa de Darwin, temos que negar um abismo imenso que existe entre nós e outros animais. Isso está ligado à neuromania. Se você acredita que a mente é idêntica às ondas cerebrais e acredita que o cérebro é um órgão que evoluiu, então, certamente, acreditará que o nosso modo de pensar é apenas moldado pelo evolucionismo. Nossas ações e a forma como agimos, tudo seria a respeito de simplesmente maximizar a passagem de nosso código genético e nada mais. Isso coloca em risco a própria noção de livre arbítrio.
O que você sugere?
Olha, meu livro é bastante negativo. Parafraseando John Locke, meu trabalho é limpar a sujeira do caminho que leva até a verdade. Apesar disso, eu tento apontar no sentido de dizer que nós temos que fazer uma certa reavaliação radical do nosso pensamento, no sentido de pensar sobre o lugar da humanidade e da consciência humana na natureza. E temos de começar nos fazendo questões fundamentais sobre a relação com o material de que somos feitos. Há algo de interessante ocorrendo entre alguns filósofos que tentam escapar da noção de que a mente é a atividade do cérebro. E que o cérebro, como um órgão evoluído, é simplesmente o servente de um processo de evolução. Há algo de bom começando em termos filosóficos nessa área, mas está num estágio muito inicial e precisamos de um gênio para vir e pensar mais profundamente sobre onde nós estamos nessa discussão neste momento. E eu não sou este gêni
o.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

HUMOR SOBRE A ANÁLISE

COMÉDIA: 220 VOLTS – ANÁLISE

S_o_Paulo_094 O talentoso Paulo Gustavo satiriza o processo terapeutico e seus clientes. Seria trágico se não fosse cômico, vermos tantas semelhanças apontadas especialmente com os pacientes histriônicos, narcísicos, paranóicos, ninfomaníacos e tantos outros tipos.
Deixo claro que a análise é muito mais do que pode parecer e obviamente a sátira é uma crítica bem feita ao fator humano das insanidades de cada personalidade.http://cdpsi.com.br/blog/index.php/2013/08/comedia-220-volts-analise/

terça-feira, 27 de agosto de 2013

PENSAMENTO E LINGUAGEM: O Enigma de Kaspar Hauser

Para meus alunos de Pensamento de Linguagem: o filme O Enigma de Kaspar Hauser esta publicado no Blog nos dias 19 e 20/07/12.

PARA MEUS ALUNOS DE PENSAMENTO E LINGUAGEM: CRIMES DA PALAVRA

http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/crimes_da_palavra.html

Crimes da palavra

A voz coletiva julga e antecipa castigos, sem individualizar responsabilidades; no filme A caça o problema está no que os adultos fazem com o que é dito por uma criança

junho de 2013
Christian Ingo Lenz Dunker
Gonçalo Viana
“Existe muita maldade no mundo, mas se nós ficamos juntos ela diminui.” Com essa frase o pai de uma menina de 5 anos tenta consolar a filha. Ela tinha dito à supervisora da creche onde estuda que seu professor havia lhe mostrado “sua vara em pé”. O pai é amigo de infância do acusado, que vive solitário em sua casa, enquanto luta para ter a guarda do filho após uma separação turbulenta. A pequena vila na Suécia, onde se passa o filme A caça, de Thomas Vinterberg (2012), reage violentamente à denúncia da menina oprimindo, atacando e vilipendiando o jovem professor. Na dúvida, é melhor fazer alguma coisa – e o que há para fazer é vingar-se. A violência contra o mal é também uma forma de “ficar junto” e de magicamente “diminuir” a maldade. É assim que a comunhão integrativa que nos une contra um inimigo, interno ou externo, promove a catarse como purificação.

As crianças dizem a verdade, afirma a escola, sem se perguntar onde e como exatamente o fazem. O filme mostra quão perniciosa pode ser a verdade quando a reduzimos ao fervor judicialista que se apossa de nós diante do pressentimento de injustiça. “Existe muita maldade no mundo, mas às vezes , se nós ficamos juntos ela aumenta... mais ainda.” E se a vingança pode reparar imaginariamente o dano, ainda não sabemos como curar os prejuízos de uma falsa denúncia pública. O filósofo Giorgio Agamben apresentou, em 1995, a figura do homo sacer para falar daqueles que podem ser mortos impunemente, seja em campos de concentração ou na cracolândia. Ainda não descobrimos uma figura equivalente para falar dos crimes impunes da palavra, mais aquém da difamação, da calúnia e da injúria. Como seria possível tipificar um crime que se baseia em incerteza de intenções, indeterminação da autoria e na inconsequência dos efeitos? A voz coletiva julga, segrega, antecipa castigos pressupondo a culpa, sem individualizar responsabilidades. No filme de Vintenberg o crime não está na palavra da criança, mas no que o adulto faz com ela: usa-a para propagar o seu próprio mal, impronunciável até então.

Há hipóteses que não alteram quem as enuncia nem a situação na qual ela é formulada. Mas há outras teses carregadas de um estranho e incontrolável efeito transformador. Entre dois amantes um deles pergunta: “E se você estiver me traindo?”. Falsa ou verdadeira, a mera enunciação da possibilidade muda completamente a natureza do laço entre os envolvidos. “Você está usando drogas?”, questionam os pais do adolescente. “De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?” (Essa pergunta, aliás, jamais deveria ser feita a qualquer criança.)

Há uma correlação entre a emergência de uma cultura da celebridade e a expansão dos crimes da palavra. A construção “social” de avaliações, juízos e demais impressões derrogatórias é uma arte ascendente no mundo corporativo. Paul Valéry (1871-1945) falava das profissões delirantes como aquelas atividades cujo sucesso depende quase exclusivamente da opinião que os outros têm sobre você, por exemplo, o artista. Ocorre que numa cultura da denúncia quase todas as profissões tornaram-se delirantes.

A incerteza promovida por uma denúncia é real – tão real quanto a devastação que ela causa na vítima da lógica vitimista. É como se diante da impotência gerada por uma dúvida nos ocupássemos antes em “ficar juntos” do que admitir a indeterminação real que atravessa nossas vidas. É preciso considerar outra forma de catarse, aquela na qual a dignidade de um caso pode derrotar a massa que imagina criar bondade só porque está unida, uma catarse que não seria purificadora e excludente do mal, mas desintegrativa em relação à própria “bondade” do grupo na qual emerge. Uma catarse que seria a cura para os crimes da palavra.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

DOCUMENTÁRIO SOBRE LACAN


Um encontro com Lacan (Documentário Rendez Vous Chez Lacan, de 2011, dirigido por Gérard Miller)

 

http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=pn8x8uQbRRQ

terça-feira, 20 de agosto de 2013

ATIVIDADES DO PROJETO FREUDIANO

Atividades do semestre 2013/2 do Projeto Freudiano.
Curtam a pagina do Projeto Freudiano no Facebook.

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA


Curso de Especialização em Psicopedagogia da UNIT que fui convida para ministrar uma disciplina:
 
 
Objetivos:
Preparar profissionais capazes de atuar, de forma ética e competente, no campo da Psicopedagogia Institucional e Clínica, atuando no diagnóstico e na intervenção preventiva e/ou terapêutica na área das dificuldades de aprendizagem, assim como desenvolver habilidades de leitura de sintomas relacionados ao processo de ensino-aprendizagem e promover a reflexão sobre a interdependência entre o ser humano e o ambiente em que ele vive.
 Público-alvo:
Profissionais graduados na área de Pedagogia, Educação e Saúde, Psicologia, Fonoaudiologia e demais profissionais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

Vejam o link:
http://ww3.unit.br/pos2014/cursos/especializacao-em-psicopedagogia/

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Discussão sobre a eficácia da Psicanálise.

A psicanálise é uma ciência?

Apesar de estudos confirmarem a eficácia do tratamento, ainda vemos centros de atenção psicossocial (CAPS)
demitindo em massa clínicos de orientação psicanalítica

 http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_psicanalise_e_uma_ciencia_.html


Christian Ingo Lenz Dunker




Em 1784 o rei Luiz XVI nomeou uma comissão da Academia Francesa de Ciências para investigar fenômenos de cura promovidos em nome do “magnetismo animal”, certa forma de energia semelhante à eletricidade, presente nos corpos animados, cujo desequilíbrio causaria doenças. Benjamin Franklin, Antoine Lavoisier e Joseph-Ignace Guillotin, tendo à frente o biólogo Antoine Jussieu, concluíram que as curas não podiam ser atribuídas aos procedimentos dos discípulos do médico e magnetizador Franz Mesmer e que os conceitos mobilizados para explicá-las eram inaceitáveis. Apesar disso algo acontecia. E mesmo que isso fosse atribuído à sugestão ou ao hipnotismo ainda assim era obrigação da ciência explicar como funciona este poder de transformar um fato da natureza por meio de palavras.

Neste tempo mudou o que chamamos de ciência e mudou o que chamamos de psicanálise. A maior parte das novas objeções centra-se em estudos sobre os casos clínicos originais mostrando seus defeitos e insuficiências. Como se tomássemos a medicina do século 19 para ridicularizar seus equívocos aos olhos de nossos critérios atuais. Até a década de 50 a psiquiatria amarrava pessoas com autismo em cadeiras, mas isso não a torna menos científica hoje.

Vem ganhando força a ideia de que a psicanálise não é apenas uma ciência, mas possivelmente várias. Assim como não podemos confundir a medicina com as ciências nas quais esta se apoia (anatomia, físico-química, genética, fisiologia), não é preciso imaginar que os fundamentos da psicanálise repousam em um único reduto, tal como a hipótese do inconsciente ou a teoria da libido. Talvez o tipo de cientificidade da psicanálise seja parecido com o da teoria da evolução, não por sua afinidade com o naturalismo, mas porque ambas tentam explicar uma gama muito grande de fenômenos, requerendo um conjunto variado de hipóteses e, portanto, uma teoria da prova diversificada. E sua teoria da prova remonta à combinação entre evidências causais que se cruzam na prática do método de tratamento, mesmo que oriundas de disciplinas diversas.

Então por que uma prática amplamente instalada nos dispositivos de produção de ciência, das universidades aos hospitais e centros de pesquisa, em quase todos os países do mundo, prestando contas em revistas, congressos e publicações, recebendo financiamento público e privado para isso, é tão frequentemente questionada? Por que, apesar de estudos independentes, promovidos por não psicanalistas, confirmarem a eficácia do tratamento psicanalítico, ainda assim vemos tradicionais Centros de Atenção Psicossocial (Caps) demitindo em massa clínicos de orientação psicanalítica?

Não é pela ineficiência ou pela cientificidade, que são usadas aqui apenas como abuso e exploração do perpétuo julgamento moral da “coisa psíquica”, mas porque como empreendimento a psicanálise é um péssimo negócio: não entra nos planos de saúde, não permite que se explore e se empreite o trabalho dos outros, não produz nenhum objeto, nem oferece um serviço padrão a ser multiplicado, indefinidamente, de modo impessoal. No fundo continuamos artesanais, no fazer e no formar, na ambição de justificativa pelas regras do jogo científico e na defesa do método clínico. Mesmo que os novos “Guillotins” queiram pensar de outra maneira.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"Patologização da vida - DSM-5 - Acordei doente mental

Acordei doente mental

A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”

ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua  -  (Foto: Lilo Clareto/Divulgação)
A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.
A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.
Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?
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Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável.
O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.
Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis".
A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.
Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.
Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (...) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.
A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.
A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.
Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.
Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios.
Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes.
Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo.
E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/05/acordei-doente-mental.html

Artigo muito bom para pensar sobre a existência (ou não) do Déficit de Atenção



Postado em: 20 mai 2013 às 19:28

Como é que a epidemia do Déficit de Atenção, que tornou-se firmemente estabelecida em vários países do mundo, foi quase completamente desconsiderada com relação a crianças na França?

Nos Estados Unidos, pelo menos 9% das crianças em idade escolar foram diagnosticadas com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), e estão sendo tratadas com medicamentos. Na França, a percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas para o TDAH é inferior a 0,5%. Como é que a epidemia de TDAH, que tornou-se firmemente estabelecida nos Estados Unidos, foi quase completamente desconsiderada com relação a crianças na França?

Déficit de Atenção em crianças francesas é inferior a 0,5% (Foto: Ilustração)
TDAH é um transtorno biológico-neurológico? Surpreendentemente, a resposta a esta pergunta depende do fato de você morar na França ou nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, os psiquiatras pediátricos consideram o TDAH como um distúrbio biológico, com causas biológicas. O tratamento de escolha também é biológico – medicamentos estimulantes psíquicos, tais como Ritalina e Adderall.
Os psiquiatras infantis franceses, por outro lado, vêem o TDAH como uma condição médica que tem causas psico-sociais e situacionais. Em vez de tratar os problemas de concentração e de comportamento com drogas, os médicos franceses preferem avaliar o problema subjacente que está causando o sofrimento da criança; não o cérebro da criança, mas o contexto social da criança. Eles, então, optam por tratar o problema do contexto social subjacente com psicoterapia ou aconselhamento familiar. Esta é uma maneira muito diferente de ver as coisas, comparada à tendência americana de atribuir todos os sintomas de uma disfunção biológica a um desequilíbrio químico no cérebro da criança.


Os psiquiatras infantis franceses não usam o mesmo sistema de classificação de problemas emocionais infantis utilizado pelos psiquiatras americanos. Eles não usam o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou DSM. De acordo com o sociólogo Manuel Vallee, a Federação Francesa de Psiquiatria desenvolveu um sistema de classificação alternativa, como uma resistência à influência do DSM-3. Esta alternativa foi a CFTMEA (Classification Française des Troubles Mentaux de L’Enfant et de L’Adolescent), lançado pela primeira vez em 1983, e atualizado em 1988 e 2000. O foco do CFTMEA está em identificar e tratar as causas psicossociais subjacentes aos sintomas das crianças, e não em encontrar os melhores bandaids farmacológicos para mascarar os sintomas.
Na medida em que os médicos franceses são bem sucedidos em encontrar e reparar o que estava errado no contexto social da criança, menos crianças se enquadram no diagnóstico de TDAH. Além disso, a definição de TDAH não é tão ampla quanto no sistema americano, que na minha opinião, tende a “patologizar” muito do que seria um comportamento normal da infância. O DSM não considera causas subjacentes. Dessa forma, leva os médicos a diagnosticarem como TDAH um número muito maior de crianças sintomáticas, e também os incentiva a tratar as crianças com produtos farmacêuticos.
A abordagem psico-social holística francesa também permite considerar causas nutricionais para sintomas do TDAH, especificamente o fato de o comportamento de algumas crianças se agravar após a ingestão de alimentos com corantes, certos conservantes, e / ou alérgenos. Os médicos que trabalham com crianças com problemas, para não mencionar os pais de muitas crianças com TDAH, estão bem conscientes de que as intervenções dietéticas às vezes podem ajudar. Nos Estados Unidos, o foco estrito no tratamento farmacológico do TDAH, no entanto, incentiva os médicos a ignorarem a influência dos fatores dietéticos sobre o comportamento das crianças.
E depois, claro, há muitas diferentes filosofias de educação infantil nos Estados Unidos e na França. Estas filosofias divergentes poderiam explicar por que as crianças francesas são geralmente mais bem comportadas do que as americanas. Pamela Druckerman destaca os estilos parentais divergentes em seu recente livro, Bringing up Bébé. Acredito que suas idéias são relevantes para a discussão, por que o número de crianças francesas diagnosticadas com TDAH, em nada parecem com os números que estamos vendo nos Estados Unidos.
A partir do momento que seus filhos nascem, os pais franceses oferecem um firme cadre – que significa “matriz” ou “estrutura”. Não é permitido, por exemplo, que as crianças tomem um lanche quando quiserem. As refeições são em quatro momentos específicos do dia. Crianças francesas aprendem a esperar pacientemente pelas refeições, em vez de comer salgadinhos, sempre que lhes apetecer. Os bebês franceses também se adequam aos limites estabelecidos pelos pais. Pais franceses deixam seus bebês chorando se não dormirem durante a noite, com a idade de quatro meses.
Os pais franceses, destaca Druckerman, amam seus filhos tanto quanto os pais americanos. Eles os levam às aulas de piano, à prática esportiva, e os incentivam a tirar o máximo de seus talentos. Mas os pais franceses têm uma filosofia diferente de disciplina. Limites aplicados de forma coerente, na visão francesa, fazem as crianças se sentirem seguras e protegidas. Limites claros, eles acreditam, fazem a criança se sentir mais feliz e mais segura, algo que é congruente com a minha própria experiência, como terapeuta e como mãe. Finalmente, os pais franceses acreditam que ouvir a palavra “não” resgata as crianças da “tirania de seus próprios desejos”. E a palmada, quando usada criteriosamente, não é considerada abuso na França.
Como terapeuta que trabalha com as crianças, faz todo o sentido para mim que as crianças francesas não precisem de medicamentos para controlar o seu comportamento, porque aprendem o auto-controle no início de suas vidas. As crianças crescem em famílias em que as regras são bem compreendidas, e a hierarquia familiar é clara e firme. Em famílias francesas, como descreve Druckerman, os pais estão firmemente no comando de seus filhos, enquanto que no estilo de família americana, a situação é muitas vezes o inverso.

 http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/deficit-de-atencao-nas-criancas-francesas.html

domingo, 19 de maio de 2013

Site com livros grátis

Um site com 926 livros em pdf.
Há alguns seminário de Lacan, obras de Freud (inclusive a tradução nova da Cia das Letras) e de diversos filósofos!
Muito bom! Recomendo!

 

quarta-feira, 15 de maio de 2013

DSM-5 - A produção da doença

A produção da doença

A partir do final de maio, estará disponível a quinta e última versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). É de esperar que, a partir de agora, um importante debate a respeito da maneira com que as distinções entre normal e patológico foram modificadas chegue à opinião pública.
Utilizado de maneira cada vez mais extensiva como padrão de reflexão sobre a natureza do sofrimento psíquico, o DSM está longe de ter o fundamento científico e isento que ele gostaria de nos fazer acreditar. Influências de toda ordem entram em cena. Afinal, cada novo transtorno é promessa de novos investimentos bilionários da indústria farmacêutica, assim como garantia do aparecimento certo de verdadeiras epidemias visíveis do dia para a noite graças à divulgação maciça pela imprensa mundial e suas matérias de saúde.
Talvez isso explique ao menos um pouco essa verdadeira tendência de "patologização da vida cotidiana" levada a cabo pelo DSM-5, que elevou o número de patologias mentais a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2 (de 1968).
De fato, com modificações como as que diminui o luto patológico de dois meses para 15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laborató- rio. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias.
Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social destas modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM. Pois uma coisa é certa: há muito o que questionar na eficácia de tais sobrediagnósticos. Basta lembrar como houve, de 2000 a 2009, um aumento de 60% no consumo de antidepressivos nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Nada indica que a taxa de depressão tenha diminuído.
Vladimir Safatle Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.
 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2013/05/1278102-a-producao-da-doenca.shtml

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Ludoterapia - Texto de Freud: Escritores Criativos e Devaneios


ESCRITORES CRIATIVOS E DEVANEIOS

FREUD, Sigmund. (1908). Escritores criativos e devaneios. Obras Psicológicas de Sigmund Freud, Vol. IX; In: Freud online. Disponível em: http://www.freudonline.com.br/livros/volume-09/vol-ix-4/ Acesso em 17/04/2013.

NOTA DO EDITOR INGLÊS
DER DICHTER UND DAS PHANTASIEREN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1907 6 de dezembro. Pronunciado como conferência)
1908 Neue Revue, 1 (10) [março], 716-2.
1909 S.K.S.N., 2,197-206 (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S. 10, 229-239.
1924 Dichtung und Kunst, 3-14.
1941 G.W., 7, 213-223.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
The Relation of the Poet to Day-Dreaming
1925 C.P., 4, 172-183. (Trad. de I. F. Frant Duff.)
A presente tradução, com um título alterado, é uma versão modificada da publicada em 1925.
Este trabalho foi originalmente pronunciado como conferência a 6 de dezembro de 1907, diante de uma platéia de noventa pessoas, nos salões do editor e livreiro vienense Hugo Heller, que também era membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. Um minucioso resumo da conferência apareceu, no dia seguinte, no diário vienense Die Zeit, mas a versão completa de Freud foi publicada pela primeira vez no início de 1908, num novo periódico literário de Berlim.
Alguns problemas da literatura criativa haviam sido mencionados pouco antes no estudo de Freud sobre Gradiva (por exemplo, em [1]), e cerca de um ou dois anos antes ele examinara a questão em um ensaio não publicado sobre ‘Tipos Psicopáticos no Palco’ (1924a [1905]). O interesse principal deste artigo, como do que se segue, escrito na mesma época, reside no exame das fantasias.
ESCRITORES CRIATIVOS E DEVANEIOS
Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade – como o Cardeal que fez uma idêntica indagação a Ariosto – em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes. Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna (insight) dos determinantes de sua escolha de material e da natureza da arte de criação imaginativa em nada irá contribuir para nos tornar escritores criativos.
Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade afim à criação literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E, na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita freqüência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta.
Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’.
O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel‘ [‘peça’] às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ [‘comédia’ e ‘tragédia’: literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’], chamando os que realizam a representação de ‘Schauspieler‘ [‘atores’: literalmente, ‘jogadores de espetáculo’]. A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem, porém, conseqüências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor.
Existe uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns instantes essa oposição entre a realidade e o brincar. Quando a criança cresce e pára de brincar, após esforçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da vida com a devida seriedade, pode colocar-se certo dia numa situação mental em que mais uma vez desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância, equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor.
Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Da mesma forma, a criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez debrincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. Acredito que a maioria das pessoas construa fantasias em algum período de suas vidas. Este é um fato a que, por muito tempo, não se deu atenção, e cuja importância não foi, assim, suficientemente considerada.
As fantasias das pessoas são menos fáceis de observar do que o brincar das crianças. A criança, é verdade, brinca sozinha ou estabelece um sistema psíquico fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu brinquedo. O adulto, ao contrário, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas. Acalenta suas fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias. Pode acontecer, conseqüentemente, que acredite ser a única pessoa a inventar tais fantasias, ignorando que criações desse tipo são bem comuns nas outras pessoas. A diferença entre o comportamento da pessoa que brinca e da fantasia é explicada pelos motivos dessas duas atividades, que, entretanto, são subordinadas uma à outra.
O brincar da criança é determinado por desejos: de fato, por um único desejo – que auxilia o seu desenvolvimento -, o desejo de ser grande e adulto. A criança está sempre brincando ‘de adulto’, imitando em seus jogos aquilo que conhece da vida dos mais velhos. Ela não tem motivos para ocultar esse desejo. Já com o adulto o caso é diferente. Por um lado, sabe que dele se espera que não continue a brincar ou a fantasiar, mas que atue no mundo real; por outro lado, alguns dos desejos que provocaram suas fantasias são de tal gênero que é essencial ocultá-las. Assim, o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e proibidas.
Mas, indagarão os senhores, se as pessoas fazem tanto mistério a respeito do seu fantasiar, como os conhecemos tão bem? É que existe uma classe de seres humanos a quem, não um deus, mas uma deusa severa – a Necessidade – delegou a tarefa de revelar aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade. São as vítimas de doenças nervosas, obrigadas a revelar suas fantasias, entre outras coisas, ao médico por quem esperam ser curadas através de tratamento mental. É esta a nossa melhor fonte de conhecimento, e desde então sentimo-nos justificados em supor que os nossos pacientes nada nos revelam que não possamos também ouvir de pessoas saudáveis.
Vamos agora examinar algumas características do fantasiar. Podemos partir da tese de que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Os desejos motivadores variam de acordo com o sexo, o caráter e as circunstâncias da pessoa que fantasia, dividindo-se naturalmente em dois grupos principais: ou são desejos ambiciosos, que se destinam a elevar a personalidade do sujeito, ou são desejos eróticos. Nas mulheres jovens predominam, quase com exclusividade, os desejos eróticos, sendo em geral sua ambição absorvida pelas tendências eróticas. Nos homens jovens os desejos egoístas e ambiciosos ocupam o primeiro plano, de forma bem clara, ao lado dos desejos eróticos. Mas não acentuaremos a oposição entre essas duas tendências, preferindo salientar o fato de que estão freqüentemente unidas. Assim como em muitos retábulos em que é visível num canto qualquer o retrato do doador, na maioria das fantasias de ambição podemos descobrir em algum canto a dama a que seu criador dedicou todos aqueles feitos heróicos e a cujos pés deposita seus triunfos. Veremos que aqui existem motivos bem fortes para ocultamento; à jovem bem educada só é permitido um mínimo de desejos eróticos, e o rapaz tem de aprender a suprimir o excesso de auto-estima remanescente de sua infância mimada, para que possa encontrar seu lugar numa sociedade repleta de outros indivíduos com idênticas reivindicações.
Não devemos supor que os produtos dessa atividade imaginativa – as diversas fantasias, castelos no ar e devaneios – sejam estereotipados ou inalteráveis. Ao contrário, adaptam-se às impressões mutáveis que o sujeito tem da vida, alterando-se a cada mudança de sua situação e recebendo de cada nova impressão ativa uma espécie de ‘carimbo de data de fabricação.’ A relação entre a fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. É como se ela flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une.
Um exemplo bastante comum pode servir para tornar claro o que eu disse. Tomemos o caso de um pobre órfão que se dirige a uma firma onde talvez encontre trabalho. A caminho, permite-se um devaneio adequado à situação da qual este surge. O conteúdo de sua fantasia talvez seja, mais ou menos, o que se segue. Ele consegue o emprego, conquista as boas graças do novo patrão, torna-se indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com sua encantadora filha, é promovido a diretor da firma, primeiro na posição de sócio do seu chefe, e depois como seu sucessor. Nessa fantasia, o sonhador reconquista o que possui em sua feliz infância: o lar protetor, os pais amantíssimos e os primeiros objetos do seu afeto. Esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro.
Há muito mais a dizer sobre as fantasias, mas limitar-me-ei a salientar aqui, de forma sucinta, mais alguns aspectos. Quando as fantasias se tornam exageradamente profusas e poderosas, estão assentes as condições para o desencadeamento da neurose ou da psicose. As fantasias também são precursoras mentais imediatas dos penosos sintomas que afligem nossos pacientes, abrindo-se aqui um amplo desvio que conduz à patologia.
Não posso ignorar a relação entre as fantasias e o sonhos. Nossos sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente. Tais desejos reprimidos e seus derivados só podem ser expressos de forma muito distorcida. Depois que trabalhos científicos conseguiram elucidar o fator de distorção onírica, foi fácil constatar que os sonhos noturnos são realização de desejos, da mesma forma que os devaneios – as fantasias que todos conhecemos tão bem.
Deixemos agora as fantasias e passemos ao escritor criativo. Acaso é realmente válido comparar o escritor imaginativo ao ‘sonhador em plena luz do dia’, e suas criações com os devaneios? Inicialmente devemos estabelecer uma distinção, separando os escritores que, como os antigos poetas egípcios e trágicos, utilizam temas preexistentes, daqueles que parecem criar o próprio material. Vamos examinar esses últimos, e, para os nossos fins, não escolheremos os mais aplaudidos pelos críticos, mas os menos pretensiosos autores de novelas, romances e contos, que gozam, entretanto, da estima de um amplo círculo de leitores entusiastas de ambos os sexos. Nas criações desses escritores um aspecto salienta-se de forma irrefutável: todas possuem um herói, centro do interesse, para quem o autor procura de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia, e que parece estar sob a proteção de uma Providência especial. Se ao fim de um capítulo deixamos o herói ferido, inconsciente e esvaindo-se em sangue, com certeza o encontraremos no próximo cuidadosamente assistido e próximo da recuperação. Se o primeiro volume termina com o naufrágio do herói, no segundo logo o veremos milagrosamente salvo, sem o que a história não poderia prosseguir. O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilharia inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heróico, expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de invulnerabilidade, podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias.
Outros traços típicos dessas histórias egocêntricas revelam idêntica afinidade. O fato de que todas as personagens femininas se apaixonam invariavelmente pelo herói não pode ser encarado como um retrato da realidade, mas será de fácil compreensão se o encararmos como um componente necessário do devaneio. O mesmo aplica-se ao fato de todos os demais personagens da história dividirem-se rigidamente em bons e maus, em flagrante oposição à verdade de caracteres humanos observáveis na vida real. Os ‘bons’ são aliados do ego que se tornou o herói da história, e os ‘maus’ são seus inimigos e rivais.
Sabemos que muitas obras imaginativas guardam boa distância do modelo do devaneio ingênuo, mas não posso deixar de suspeitar que até mesmo os exemplos mais afastados daquele modelo podem ser ligados ao mesmo através de uma seqüência ininterrupta de casos transicionais. Notei que, na maioria dos chamados ‘romances psicológicos’, só uma pessoa – o herói – é descrita anteriormente, como se o autor se colocasse em sua mente e observasse as outras personagens de fora. O romance psicológico, sem dúvida, deve sua singularidade à inclinação do escritor moderno de dividir seu ego, pela auto-observação, em muitos egos parciais, e em conseqüência personificar as correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis. Certos romances, que poderíamos classificar de ‘excêntricos’, parecem contrapor-se ao devaneio modelo. Nestes, a pessoa apresentada como herói desempenha um papel muito pouco ativo; vê os atos e sofrimentos das demais pessoas como espectador. Muitos dos últimos romances de Zola pertencem a essa categoria. Mas devo assinalar que a análise psicológica de indivíduos que não são escritores criativos, e que em alguns aspectos se afastam da norma, mostrou-nos variações análogas do devaneio, nos quais o ego se contenta com o papel de espectador.
Para que nossa comparação do escritor imaginativo com o homem que devaneia e da criação poética com o devaneio tenha algum valor é necessário, acima de tudo, que se revele frutuosa, de uma forma ou de outra. Tentemos, por exemplo, aplicar à obra desses autores a nossa tese anterior referente à relação entre a fantasia e os três períodos de tempo, e o desejo que o entrelaça; e com seu auxílio estudemos as conexões existentes entre a vida do escritor e suas obras. Em geral, até agora não se formou uma idéia concreta da natureza dos resultados dessa investigação, e com freqüência fez-se da mesma uma concepção simplista. À luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar a situação como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga.
Não se alarmem ante a complexidade dessa fórmula. Na verdade suspeito que a mesma irá revelar-se como um esquema muito insuficiente. Entretanto, mesmo assim talvez ofereça uma primeira aproximação do verdadeiro estado de coisas; por experiências que realizei, inclino-me a pensar que essa visão das obras criativas pode produzir seus frutos. Não se esqueçam que a ênfase colocada nas lembranças infantis da vida do escritor – ênfase talvez desconcertante – deriva-se basicamente da suposição de que a obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil.
Não devemos esquecer, entretanto, de examinar aquele outro gênero de obras imaginativas, que não são uma criação original do autor, mas uma reformulação de material preexistente e conhecido (ver em [1]). Mesmo nessas obras o escritor conserva uma certa independência que se manifesta na escolha do material e nas alterações do mesmo, às vezes muito amplas. Embora esse material não seja novo, procede do tesouro popular dos mitos, lendas e contos de fadas. Ainda está incompleto o estudo de tais construções da psicologia dos povos, mas é muito provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem.
Poderão dizer que, embora eu tenha colocado o escritor criativo em primeiro lugar no título deste artigo, me ocupei menos dele que das fantasias. Reconheço o fato, e devo tentar desculpar-me alegando o estado atual de nossos conhecimentos. Pude apenas oferecer certos encorajamentos e sugestões que, partindo do estudo das fantasias, levaram ao problema da escolha do material literário pelo escritor. Quanto ao outro problema – como o escritor criativo consegue em nós os efeitos emocionais provocados por suas criações -, ainda não o tocamos. Mas gostaria, ao menos, de indicar-lhes o caminho que do nosso exame das fantasias conduz aos problemas dos efeitos poéticos.
Devem estar lembrados de que eu disse (ver a partir de [1]) que o indivíduo que devaneia oculta cuidadosamente suas fantasias dos demais, porque sente ter razões para se envergonhar das mesmas. Devo acrescentar agora que, mesmo que ele as comunicasse para nós, o relato não nos causaria prazer. Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias. Mas quando um escritor criativo nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes. Como o escritor o consegue constitui seu segredo mais íntimo. A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desseprazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e complexas investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame.