Entrevista inédita de Jacques
Lacan à revista italiana Panorama (1974)
Publicado:
segunda-feira, 31 março, 2008
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Entrevista a Emilio Granzotto
Publicada por Magazine Littéraire, Paris, n.428,
fev/2004.
Tradução: Marcia Gatto
Nesta entrevista concedida em 1974, Jacques
Lacan alerta sobre os perigos do retorno da religião e do cientificismo: a
psicanálise é para ele o único baluarte aceitável contra as angústias
contemporâneas.
“EG – Fala-se cada vez mais freqüentemente de crise
da psicanálise. Sigmund Freud, dizem, está ultrapassado, a sociedade moderna
descobriu que sua obra não seria suficiente para compreender o homem nem para
interpretar a fundo sua relação com o mundo.
JL – São histórias. Em primeiro lugar, a
crise. Ela não existe, não pode existir. A psicanálise não encontrou
exatamente seus próprios limites, ainda não. Ainda há tanto a descobrir na
prática e no conhecimento. Em psicanálise, não há solução imediata, mas
somente a longa e paciente busca das razões. Em segundo lugar, Freud. Como
julgá-lo ultrapassado se nós ainda não o compreendemos inteiramente? O que
é certo, é que ele nos fez conhecer coisas extremamente novas, que não
poderíamos nem imaginar antes dele. Desde os problemas do inconsciente à
importância da sexualidade, do acesso ao simbólico ao assujeitamento às leis da
linguagem. Sua doutrina colocou em questão a verdade, é algo que concerne a
todos e cada um pessoalmente. Uma crise é outra coisa. Eu o repito:
estamos longe de Freud. Seu nome serviu para cobrir muitas coisas, houve
desvios, os epígonos nem sempre seguiram fielmente o modelo, confusões foram
criadas. Após sua morte em 1939, alguns de seus alunos também pretenderam
exercer a psicanálise de maneira diferente, reduzindo seu ensinamento a alguma
fórmula banal: a técnica como ritual, a prática como restrita ao tratamento do
comportamento, e como meio de readaptação do indivíduo a seu meio
social. É a negação de Freud, uma psicanálise de conforto, de salão. Ele
próprio o havia previsto. Há três posições insustentáveis, dizia ele, três
tarefas impossíveis: governar, educar e exercer a psicanálise. Atualmente,
pouco importa quem assume a responsabilidade de governar, e todo o mundo se
pretende educador. Quanto aos psicanalistas, graças a Deus, eles
prosperam, como os magos e curandeiros. Propor às pessoas ajudá-las
significa um sucesso assegurado, e a clientela se acotovelando na porta. A
psicanálise é outra coisa.
EG – O que exatamente?
JL – Eu a defino como sintoma – revelador do
mal-estar da civilização na qual vivemos. Certo, não é uma
filosofia. Detesto a filosofia, há tanto tempo ela não diz nada de
interessante. A psicanálise também não é uma fé, e não me agrada chamá-la
de ciência. Digamos que é uma prática e que ela se ocupa do que não está
funcionando. Terrivelmente difícil porque ela pretende introduzir na vida
do dia-a-dia o impossível, o imaginário. Ela obteve alguns resultados até
o presente, mas ainda não tem regras e se presta a toda sorte de equívocos. É
preciso não esquecer que se trata de algo totalmente novo, seja do ponto de
vista da medicina, seja do da psicologia e seus anexos. Ela também é muito
jovem. Freud morreu há apenas trinta e cinco anos. Seu primeiro
livro, A interpretação dos sonhos, foi publicado em 1900 com muito pouco
sucesso. Foram vendidos, creio, trezentos exemplares em alguns anos. Ele
tinha poucos alunos, tomados por loucos e nem mesmo de acordo com a maneira de
colocar em prática e de interpretar o que tinham aprendido.
EG – O que não funciona hoje no homem?
JL – É essa grande lassidão, a vida como
conseqüência da corrida pelo progresso. Através da psicanálise, as pessoas
esperam descobrir até onde podemos ir carregando essa lassidão.
EG – O que empurra as pessoas a se fazer
analisar?
JL – O medo. Quando lhe acontecem coisas,
mesmo desejadas por ele, coisas que ele não compreende, o homem tem
medo. Ele sofre por não compreender, e pouco a pouco cai num estado de
pânico. É a neurose. Na neurose histérica, o corpo fica doente de
medo de estar doente, e sem estar na realidade. Na neurose obsessiva, o
medo coloca coisas bizarras na cabeça, pensamentos que não podemos controlar,
fobias nas quais as formas e os objetos adquirem significações diversas, e que
dão medo.
EG – Por exemplo?
JL – Acontece ao neurótico se sentir
pressionado por uma necessidade assustadora de ir dezenas de vezes verificar se
uma torneira está realmente fechada, ou se uma coisa está no lugar correto,
sabendo entretanto com certeza que a torneira está como deve estar e que a
coisa está no lugar onde ela deve se achar. Não há pílulas para curar
isso. É preciso descobrir porque isso acontece conosco, e saber o que isso
significa.
EG – E o tratamento?
JL – O neurótico é um doente que se trata com
a palavra, e acima de tudo, com a dele. Ele deve falar, contar, explicar-se
a si próprio. Freud define a psicanálise como a assunção da parte do
sujeito de sua própria história, na medida em que ela é constituída pela
palavra endereçada a um outro. A psicanálise é a rainha da palavra, não há
outro remédio. Freud explicava que o inconsciente não é tão profundo
quanto inacessível ao aprofundamento consciente. E ele dizia que nesse
inconsciente, aquele que fala é um sujeito dentro do sujeito, transcendendo o
sujeito. A palavra é a grande força da psicanálise.
EG – Palavra de quem? Do doente ou do
psicanalista?
JL – Em psicanálise os termos “doente”,
“médico”, “remédio” não são mais justos que as fórmulas no passivo que adotamos
comumente. Dizemos: se fazer psicanalisar. É um erro. Aquele que faz
o verdadeiro trabalho em psicanálise, é aquele que fala, o sujeito
analisante. Mesmo se ele o faz da maneira sugerida pelo analista, que lhe
indica como proceder e o ajuda por suas intervenções. Lhe é também
fornecida uma interpretação. À primeira vista, ela parece dar um sentido ao que
o analisante diz. Na realidade, a interpretação é mais sutil, tendendo a
apagar o sentido das coisas pelas quais o sujeito sofre. O objetivo é
mostrar-lhe através de sua própria narrativa que o sintoma, a doença digamos,
não tem nenhuma relação com nada, que ela é privada de qualquer sentido que
seja. Mesmo se na aparência ela é real, ela não existe. As vias pelas
quais esse ato da palavra procede, reclamam muita prática e uma infinita
paciência. A paciência e a medida são os instrumentos da
psicanálise. A técnica consiste em saber medir a ajuda que damos ao
sujeito analisante. Em conseqüência, a psicanálise é difícil.
EG – Quando falamos de Jacques Lacan, associamos
inevitavelmente esse nome a uma fórmula, o “retorno a Freud”. O que isso
significa?
JL – Exatamente o que é dito. A
psicanálise é Freud. Se queremos fazer psicanálise, é necessário voltar a
Freud, a seus termos e a suas definições, lidos e interpretados no sentido
literal. Fundei em Paris uma Escola freudiana precisamente com esse
objetivo. Há vinte anos ou mais que exponho meu ponto de vista: retornar a
Freud significa simplesmente tirar o terreno dos desvios e dos equívocos da
fenomenologia existencial por exemplo, como do formalismo institucional das
sociedades psicanalíticas, retornando a leitura do ensinamento de Freud segundo
os princípios definidos e enumerados a partir de seu trabalho. Reler Freud
quer dizer somente reler Freud. Quem não faz, em psicanálise, utiliza uma
fórmula abusiva.
EG – Mas Freud é difícil? E Lacan,
dizem, o torna completamente incompreensível. A Lacan repreende-se falar e
sobretudo escrever de tal maneira que somente muito poucos adeptos podem
esperar compreender.
JL – Eu sei, tornam-me por um obscuro que
esconde seu pensamento em cortinas de fumaça. Eu me pergunto por
que. A propósito da análise, repito com Freud que é “o jogo intersubjetivo
através do qual a verdade entra no real”. Não está claro? Mas a
psicanálise não é um negócio para crianças. Meus livros são definidos como
incompreensíveis. Mas para quem? Eu não os escrevi para todo o mundo, para
que sejam compreendidos por todos. Ao contrário, nunca me ocupei minimamente de
qualquer leitor que seja. Eu tinha coisas a dizer e as disse. É me
suficiente ter um público que leia. Se ele não compreende,
paciência. Quanto ao número de leitores, tive mais sorte que
Freud. Meus livros são mesmo muito lidos, fico surpreso com isso. Também
estou convencido de que em dez anos no máximo, aquele que me lerá me achará
extremamente transparente, como um belo copo de cerveja. Talvez até se
diga então: “Esse Lacan, que banalidade!”
EG – Quais são as características do
lacanismo?
JL – É um pouco cedo para dizê-lo, no momento
em que o lacanismo ainda não existe. Sentimos dele apenas o cheiro, como
pressentimento. Lacan, em todos os casos, é um senhor que pratica a psicanálise
há pelo menos quarenta anos, e que há tantos anos a estuda. Eu creio no
estruturalismo e na ciência da linguagem. Escrevi em meu livro que “aquilo a
que nos leva a descoberta de Freud é à enormidade da ordem na qual
entramos, na qual nascemos, se podemos nos exprimir assim, uma segunda vez,
saindo do estado chamado a justo título infans, sem palavra”. A ordem
simbólica sobre a qual Freud fundou sua descoberta é constituída pela linguagem
como momento do discurso universal concreto. É o mundo da palavra que cria
o mundo das coisas, inicialmente confusas em tudo aquilo que está em
devir. Há somente as palavras para dar um sentido completo à essência das
coisas. Sem as palavras, nada existiria. O que seria o prazer sem o
intermediário da palavra? Minha opinião é que Freud, enunciando em suas
primeiras obras – A interpretação dos sonhos, Além do princípio do prazer,
Totem e tabu – as leis do inconsciente, formulou, como precursor, as teorias
com as quais alguns anos mais tarde Ferdinand de Saussure teria aberto a via à
lingüística moderna.
EG – E o pensamento puro?
JL – Ele está submetido como todo o resto às
leis da linguagem. Somente as palavras podem engendrá-lo e dar-lhe consistência. Sem
a linguagem a humanidade não daria um passo adiante nas pesquisas / buscas do
pensamento. É o caso da psicanálise. Qualquer que seja a função que
possamos lhe atribuir, agente de cura, formação ou de sondagem, há apenas um
meio do qual nos servimos: a palavra do paciente. E toda palavra merece
resposta.
EG – A análise como diálogo,
portanto. Há pessoas que a interpretam mais como um sucedâneo da
confissão.
JL – Mas que confissão? Ao psicanalista
confessamos um belo nada. Deixamo-nos ir a lhe dizer simplesmente tudo que
se passa pela cabeça. Palavras, precisamente. A descoberta da
psicanálise é o homem como animal falante. Cabe ao analista ordenar as
palavras que ele ouve e dar-lhes um sentido, uma significação. Para fazer
uma boa análise, é necessário o acordo, o entendimento entre o analisante e o
analista. Através do discurso de um, o outro procura imaginar do que se
trata, e encontrar além do sintoma aparente o nó difícil da verdade. A
outra função do analista é explicar o sentido das palavras para fazer
compreender ao paciente o que se pode esperar da análise.
EG – É uma relação de extrema confiança.
JL – Mais uma troca, na qual o importante é
que um fala e o outro escuta. Também o silêncio. O analista não faz
pergunta e não tem idéias. Ele só dá as respostas que ele quer realmente
dar às questões que sua vontade suscita. Mas ao final, o analisante vai
sempre aonde seu analista o leva.
EG – O senhor acaba de falar do
tratamento. Há possibilidade de curar? Sai-se da neurose?
JL – A psicanálise tem sucesso quando ela
limpa o terreno, sai do sintoma, sai do real. Quer dizer quando ela chega
à verdade.
EG – O senhor pode enunciar o mesmo conceito
de uma maneira menos lacaniana?
JL – Eu chamo sintoma tudo aquilo que vem do
real. E o real tudo aquilo que não vai bem, que não funciona, que se opõe
à vida do homem ao afrontamento de sua personalidade. O real volta sempre
ao mesmo lugar. Você sempre encontrará lá, com os mesmos
semblantes. Por mais que os cientistas digam que nada é impossível no
real. É preciso ter um grande topete para afirmar coisas desse gênero, ou
então, como eu suspeito, a total ignorância do que se faz e diz. O real e o
impossível são antitéticos, eles não podem caminhar juntos. A análise
empurra o sujeito para o impossível, ela lhe sugere considerar o mundo
como ele é realmente, isto é, imaginário, sem significação. Enquanto que o
real, como um pássaro voraz, só faz se alimentar de coisas sensatas, de ações
que têm sentido. Ouve-se repetir que é preciso dar um sentido a isso e a
aquilo, a seus próprios pensamentos, a suas próprias aspirações, aos desejos,
ao sexo, à vida. Mas da vida não sabemos nada de nada. Os sábios
perdem o fôlego a nos explicar. Meu medo é que por seus erros, o real, essa coisa
monstruosa que não existe, acabe por conseguir, por levar a melhor. A
ciência é substituída pela religião, e ela é de outra maneira mais despótica,
obtusa e obscurantista. Há um deus-átomo, um deus-espaço, etc. Se a
ciência ganha ou a religião, a psicanálise está acabada.
EG – Atualmente, que relação existe entre a
ciência e a psicanálise?
JL – Para mim a única ciência
verdadeira, séria, a ser seguida, é a ficção científica. A outra, a
oficial, que tem seus altares nos laboratórios, avança às cegas, sem meio correto. E
ela até começa a ter medo de sua sombra. Parece que chegou o momento da
angústia para os sábios. Em seus laboratórios assépticos, alinhados em
seus jalecos engomados, esses velhos bambinos que brincam com coisas
desconhecidas, fabricando aparelhos cada vez mais complicados e inventando
fórmulas cada vez mais obscuras, começam a se perguntar o que poderá acontecer
amanhã, o que essas pesquisas sempre novas acabarão por trazer. Enfim!
Digo. E se fosse muito tarde? Os biólogos se perguntam agora, ou os físicos, os
químicos. Para mim, eles são loucos. Já que eles já estão mudando a
face do universo, vem-lhes ao espírito somente agora se perguntar se por acaso
isso pode ser perigoso. E se tudo explodisse? Se as bactérias criadas
tão amorosamente nos brancos laboratórios se transformassem em inimigos
mortais? Se o mundo fosse varrido por uma horda dessas bactérias com toda
a merda que o habita, a começar por esses sábios dos laboratórios? Às três
posições impossíveis de Freud, governo, educação, psicanálise, eu acrescentaria
uma quarta, a ciência. Ademais, que os sábios não sabem que sua posição é
insustentável.
EG – Eis uma versão bastante pessimista do
que chamamos progresso.
JL – Não, é algo completa-mente
diferente. Eu não sou pessimista. Nada acontecerá. Pela simples
razão de que o homem é uma porcaria, nem mesmo capaz de destruir a si
próprio. Pessoalmente, acharia maravilhoso um flagelo total produzido pelo
homem. Isso seria a prova de que ele conseguiu fazer alguma coisa com suas
mãos, sua cabeça, sem intervenções divina, natural ou outros. Todas essas belas
bactérias superalimentadas para a diversão, espalhadas através do mundo como os
gafanhotos da Bíblia, significariam o triunfo do homem. Mas isso não
acontecerá. A ciência atravessa felizmente essa crise de responsabilidade,
tudo entrará na ordem das coisas, como se diz. Eu anunciei: o real levará
vantagem, como sempre. E nós estaremos como sempre ferrados.
EG – Outro paradoxo de Jacques
Lacan. Censuram-lhe, além da dificuldade da língua e a obscuridade dos
conceitos, os jogos de palavras, os gracejos de linguagem, os trocadilhos à
francesa, e justamente, os paradoxos. Aquele que escuta ou que lê o senhor
tem o direito de se sentir desorientado.
JL – De fato eu não brinco, digo coisas muito
sérias. Eu apenas me sirvo da palavra como os sábios de que falei de seus
almanaques e de suas montagens eletrônicas. Eu procuro me referir sempre à
experiência da psicanálise.
EG – O senhor diz: o real não
existe. Mas o homem médio sabe que o real é o mundo, tudo que o cerca, que
ele vê a olho nu, toca.
JL – Livremo-nos também desse homem médio
que, em primeiro lugar, não existe. É apenas uma ficção
estatística. Existem indivíduos, é tudo. Quando ouço falar do homem
da rua, de pesquisas de opinião, de fenômenos de massa e de coisas desse
gênero, penso em todos os pacientes que vi passar pelo divã em quarenta anos de
escuta. Nenhum, em qualquer medida, é semelhante ao outro, nenhum tem as mesmas
fobias, as mesmas angústias, o mesmo modo de contar, o mesmo medo de não
compreender. O homem médio, quem é? Eu, o senhor, meu zelador, o
presidente da República?
EG – Nós falávamos de real, do mundo que
todos nós vemos.
JL – Justamente. A diferença entre o
real, isto é, o que não vai bem, e o simbólico, o imaginário, isto é, a
verdade, é que o real é o mundo. Para constatar que o mundo não existe,
que ele não está aqui, é suficiente pensar em todas as banalidades que uma
infinidade de imbecis acreditam ser o mundo. E convido meus amigos da
Panorama, antes de me acusarem de paradoxo, a refletirem bem sobre o que leram
apenas.
EG – Dir-se-ia que o senhor está cada vez
mais pessimista.
JL – Não é verdade. Não me enquadro nem entre
os alarmistas nem entre os angustiados. Infeliz do psicanalista que não
tiver ultrapassado o estádio da angústia. É verdade, existem à nossa volta
coisas horripilantes e devoradoras, como a televisão pela qual uma grande parte
de nós é fagocitada. Mas isto é apenas porque existem pessoas que se
deixam fagocitar, que até inventam um interesse para aquilo que elas
vêem. E depois há outras coisas monstruosas devoradoras de outra maneira:
os foguetes que vão à lua, as pesquisas no fundo dos oceanos, etc. Todas
as coisas que devoram. Mas não há porque se fazer um drama
disso. Estou certo de que assim que estivermos de saco cheio de foguetes,
da televisão e de todas suas malditas pesquisas no vazio, encontraremos outra
coisa com a qual nos ocuparmos. É uma revivescência da religião, não
é? E que melhor monstro devorador do que a religião? É uma festa
contínua com a qual se divertir por séculos, como isso já foi demonstrado.
Minha resposta a tudo isso é que o homem sempre soube se adaptar ao mal.
O único real que podemos conceber, ao qual temos acesso, é justamente este,
será preciso se fazer uma razão: dar um sentido às coisas, como
dizíamos. De outra forma, o homem não teria angústia, Freud não teria se
tornado célebre, e eu seria professor de segundo grau.
EG – As angústias são toda dessa natureza ou
existem angústias ligadas a certas condições sociais, a certa época histórica,
a certas latitudes?
JL – A angústia do sábio que tem medo de suas
descobertas pode parecer recente. Mas o que sabemos nós do que aconteceu
em outros tempos? Dos dramas de outros pesquisadores? A angústia do
operário escravo da cadeia de montagem como de um remador de galera, é a
angústia de hoje. Ou, mais simplesmente, ela está ligada às definições e
palavras de hoje.
EG – Mas o que é a angústia para a psicanálise?
JL – Algo que se situa fora de nosso corpo,
um medo, mas de nada, que o corpo, espírito incluído, possa motivar. O medo do
medo, em suma. Muitos desses medos, muitas dessas angústias, no nível em que os
percebemos têm a ver com o sexo. Freud dizia que a sexualidade é sem
remédio e sem esperança. Uma das tarefas do analista é encontrar na
palavra do paciente a relação entre a angústia e o sexo, esse grande
desconhecido.
EG – Agora que se distribui sexo em todas as
curvas, sexo no cinema, sexo no teatro, na televisão, nos jornais, nas canções,
nas praias, ouve-se dizer que as pessoas estão menos angustiadas com os
problemas ligados à esfera sexual. Os tabus caíram, dizem, o sexo não dá
mais medo.
JL – A sexomania invasora é apenas um fenômeno
publicitário. A psicanálise é uma coisa séria que diz respeito, repito-o, a uma
relação estritamente pessoal entre dois indivíduos: o sujeito e o
analista. Não existe psicanálise coletiva assim como não existe angústias
ou neuroses de massa. Que o sexo seja colocado na ordem do dia e exposto na
esquina das ruas, tratado como um detergente qualquer nos carrosséis
televisivos, não comporta nenhuma promessa de algum benefício. Não digo que
isso seja ruim. Não é suficiente certamente para tratar as angústias e os
problemas particulares. Faz parte da moda, dessa fingida liberalização que
nos é fornecida, como um bem dado de cima, pela dita sociedade
permissiva. Mas não serve ao nível da psicanálise.”