Como se
fabricam crianças loucas
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/17/opinion/1395072236_094434.html
Em uma
noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina
duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se
na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica.
Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava
pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes
pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se
molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma
conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em
qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com
a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia,
ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:
- Por que
eu vou ficar aqui?
Flávia
descobriu que não tinha resposta.
Maria fez
então a segunda pergunta:
- Quem tá
aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
Flávia
descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque,
ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos
mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A
“menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a
obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica.
Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria
adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.
Flávia
abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou,
carregando olhos molhados e pontos de interrogação.
A “menina
louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava
a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica
O que
Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21,
crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres,
continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança
louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma
existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes,
desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que
lhe negavam a humanidade tão cedo.
Flávia
não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas.
Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da
Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM)
Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de
crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia
sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então,
botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos
os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611
internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das
crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes
tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao
Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual
era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como
primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.
O arquivo
do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto
pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que
gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e
profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e
adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda
que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas,
os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E
mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade
profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas
falavam.
Duas crianças,
que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram
histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do
passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão
chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três
anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos –
e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel
estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da
equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o
destino dado a crianças como eles no Brasil.
Por quê?
Flávia
sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então,
botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações
ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009
É preciso
prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil
horas dentro do arquivo transformou-se numa
dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia
Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais
de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do
Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das
diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma
psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na
comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer
depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece
em casos demais.
“Medievais”,
“desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir
os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final
dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa
mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer
diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de
serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida
manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só
possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas
crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar,
Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato,
estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de
conseguir enlouquecê-las.
Raquel
nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe
de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para
sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é
também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó
colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como
“agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar
com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A
escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à
agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De
abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.
Talvez
valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as
circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito
à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha
quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada,
agressiva, não dá certo... Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.
Ela
queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital
psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo
determinado
Negra
como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no
sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial
entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas,
identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender
a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos
quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação
daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que
sejam apenas pobres e abandonados.
Em pouco
mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito
por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%,
crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois
caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém,
algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período
pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A
maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das
internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram
crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55
dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com
duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de
quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.
Entre
eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A
queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de
outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva
(agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco
resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a
um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem
judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no
abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”.
Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta.
Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três
dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar
ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e
falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.
Nessas
três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital
liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos
anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos
relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto
pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos
documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo
para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma
resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente
continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos,
encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.
“Medievais”,
“desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir
os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final
dos anos 1970
A cada
três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase
dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma
semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com
episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em
unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao
tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital.
Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o
longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos
familiares e a impediu de criar novos?
Raquel
permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo.
Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus
remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se
enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.
Na sexta
vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior
dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação
na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente,
criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática
médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.
Em outras
palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus
vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no
hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos
entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava
profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas
e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim
voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.
No total,
Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua
vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória
manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital
psiquiátrico
Nessa
época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a
oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas
vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes
que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade
ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.
No total,
Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua
vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória
manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital
psiquiátrico.
O
diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é
bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação
Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são
caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou
desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas
sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras
infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de
comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que
compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e
psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas,
ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é
inserção comunitária – e não asilamento.
Em sua
investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem
sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar
internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de
saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é
esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com
uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do
Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os
chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais
“transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo
de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para
7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é
diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que
exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga.
Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a
proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De
2005 a 2009 saltou para 45%.
Em sua
investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem
sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar
internações em hospitais psiquiátricos
O
“transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial
do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto
das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos
casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo
de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e
adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor
compreendidas.
José
tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem
judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos,
negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e
transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente
de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem,
José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a
viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de
agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.
Quando
teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes
de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu.
Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora
com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e
risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir
novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele
permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde
fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.
No total,
José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e
Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008:
“(...) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para
tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma
vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em
abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por
uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A
resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela
mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma
concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo.
Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças,
singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente
psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam
crianças loucas.
Vale a
pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não
ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece
acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e
Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num
manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria.
Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles
fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como
Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um
carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.
O desafio
exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil.
Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da
comunidade, junto à família, sem afastamento da escola
Ao
analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças
entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas
são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não
funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é
feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8%
são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro
de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para
crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a
falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de
assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica,
inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção
necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se
houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na
legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez
do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em
equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da
Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em
situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção
e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos
campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.
A
diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de
Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos
outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois
da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários
funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes
encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise.
A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico,
que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital
funciona como instituição de asilamento.”
O desafio
exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil.
Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da
comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato
existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como
a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for
necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a
história inteira. A internação é um momento, não um destino.
Flávia
permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa
noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se
atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras.
Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube
o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que
pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um
trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira
e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o
segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve
uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre
as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.
Ao final
de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente
tinha as respostas para Maria.
1) Por que
eu vou ficar aqui?
- Porque
as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente
trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.
2) Quem
tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
- As
crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela
desresponsabilização e pelo abandono.
Maria
perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o
movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o
Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É,
afinal, de escuta que se trata.
Flávia
desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas
o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é
decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma
marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição,
continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma
grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A
institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”
Aos 19
anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das
instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos.
Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:
- Onde
está José?
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da
Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada,
Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:
elianebrum@uol.com.br. Twitter: @brumelianebrum