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Arthur Bispo do Rosário: a salvação pela arte
Artista contemporâneo e sergipano
reverenciado no seu tempo, Bispo foi imortalizado pela atemporalidade da
arte. A arte contemporânea enseja desconstruções de concepções para a
abertura do desaprendizado instigante de significações, ou seja, a arte
contemporânea “não fornece respostas, ela problematiza, inquieta… Há
articulações de questionamentos possibilitando pluralidade de leituras’’, evidenciando o que Bispo do Rosário ressoou com suas rupturas estéticas e perturbadoras.
Experimentou-se dentro dos muros de
instituições psiquiátricas, principalmente na Colônia Juliano Moreira
(diagnosticado como esquizofrênico paranoide), depois de perambular, por
dias, pela Igreja da Candelária e Mosteiro de São Bento, no Rio de
Janeiro, proferindo a salvação e julgamento dos vivos e mortos pela sua
determinação; começando esse seu primeiro surto após ouvir vozes de
anjos o consagrando como Jesus Cristo, numa data bastante simbólica;
meia-noite de 24 de dezembro de 1938. Durante cerca de cinco décadas
nessas instituições (entre idas e vidas, ficando ininterruptamente por
uns 25 anos), Bispo imergiu na arte como forma de resistência à
condenação da loucura instituída. ‘’A arte de Arthur Bispo do Rosário é
um aspecto de lucidez, parte de uma necessidade’’, como disse o ator
João Miguel, que interpretou o artista na peça ‘’O Bispo’’, 2001-04, em
São Paulo.
Circunscrito por fissuras, o passado de
Arthur Bispo é repleto de especulações, já que era negado por ele mesmo,
‘’Um dia, eu simplesmente apareci pelos braços da Virgem Maria’’, disse
certa vez. Não se sabe precisamente o ano do seu nascimento, se foi
1909 ou 1911, mas a especulação majoritária mostra que Bispo necessitou
alterar seu ano de nascimento para poder ingressar na Marinha, onde
permaneceu, aproximadamente, dos 15 aos 23 anos.
Na Colônia Juliano Moreira, Bispo, por
ter aprendido boxe no período em que foi marinheiro, estabeleceu uma
cumplicidade com os funcionários da instituição, tornando-se ‘’xerife’’.
Com poderes concedidos pela sua argúcia, ele repreendeu e controlou os
pacientes que geraram alvoroço. Auxiliando nas tarefas cotidianas.
Forjou-se de autoridade, e com isso conquistou o respeito dos
funcionários e pacientes.
Quando Bispo tinha 72 anos, em 1982, o
crítico de arte Frederico Moraes, organizador da exposição com artistas
catalogadas pela sociedade como marginais, já que buscou expor a arte
daqueles considerados ‘’inumanos’’, aglutinou o conjunto artístico de
Rosário na exposição ‘’À Margem da Vida’’, no Museu de Arte Moderna
(MAM) do Rio de Janeiro, sendo esta a primeira e única exposição com o
aval do artista sergipano em vida.
A reinvenção perpassou sua obra, já que o
desutilizado, descartado, o que servia só para o lixo, para Bispo, era
poesia visual. Ele colocou expressão nos restos, resignificando-os nas
criações surgidas de desconstruções; transfigurou objetos. Sem as
convenções dos métodos das artes plásticas, Arthur se configurou, pelos
eruditos das artes, como artista de vanguarda, por ser inovador de
desutilidades, de forma emblemática. Ele foi o ‘’rebelde’’ dos objetos;
compulsivo e obsessivo por eles, como uma forma de colecionismo,
oferecendo o revesso do concebido originalmente. Bispo criou e recriou
suas peças dentro do seu alojamento que mais parecia uma instalação,
permeado por explosões divinas, já que se autoproclamou o messias, vendo
na sua internação o reconhecimento disso. Alheio a toda estratificação
da arte, sua poética era intuitiva. Sendo ‘’uma situação no mínimo
instigante: a linguagem que o coloca num patamar de vanguarda é a mesma
que está na base da realização artística primordial no processo
civilizatório, que ocorre mediante a coleta de conchas, de penas de ave,
de pedras e outros recursos rochosos.’’


‘’Arthur Bispo do Rosário se proclamava
Jesus. Sua obra é ardente de restos: estandartes podres, lençóis
encardidos, botões cariados, objetos mumificados, fardões de Academia,
Miss Brasil, suspensórios de doutores. Descobri entre seus objetos um
buquê de pedras com flor. Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em
nada e em Deus’’

A complexidade da arte de Rosário leva a
discussões paradoxais sobre como defini-lo – louco ou gênio? -,
configurando-se conceituações simplistas, que não abarcam a dialética.
‘’Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam sempre a
dois metros do chão’’, como o artista poetizou. Uma marca inextinguível
da arte é a distinção e/ou junção do enquadramento de louco e/ou gênio.
O mundo artístico, por vezes, recheado dessas figuras instigantes, como
o artista francês Antonin Artaud (1896-1948), que articulou o ‘’Teatro
da Crueldade’’ – como representação da crueldade da sociedade, do ser
humano, em seu âmago -, passando por vários manicômios, durante anos,
ficando 9 anos ininterruptamente Para Sigmund Freud, ‘’O artista é
aquele que mais se aproxima do inconsciente e dos loucos’’. E sobre o
louco disse: ‘’A formação delirante que julgamos ser uma produção
patológica é, na verdade, uma tentativa de cura, um processo de
reconstrução’’.
A palavra: mar fluindo nas peças
ornamentadas de Bispo e seu mundo reconstruído (ou desconstruído).
Tecendo palavras cheias de sentido próprio, ou revivendo pela palavra
bordada a experiência do seu primeiro surto (o de 1938) altivo em sua
arte, como nos mantos, estandartes… Peças que se figuraram como livros.
Há em Rosário a necessidade de registros. A peça ‘’434 – como é que devo
fazer um muro’’ é um pedaço de madeira inventado de palavras; uma
miniatura do mundo (era frequente, em Bispo, apequenar o mundo com
restos).

O brado retumbante da obra de Bispo é
uma miscelânea, na qual se pode identificar uma fenda axial em grande
parte de sua arte; a religiosidade. As significações atribuídas a sua
vida e, conseguentemente, sua arte foram embasadas nesses arcanos da
religião, como em sua peça mais famosa, o ‘’Manto da Apresentação’’, uma
vestimenta ‘’sagrada’’ para ser envergada pelo artista no infalível
Juízo Final. Essa peça é adornada (emanharada), entre outros aspectos,
de nomes bordados, os nomes – pessoas – que seriam salvas (bordou, com
certa frequência, nomes em suas peças, como modo de salvar as pessoas
que o reconheciam como Jesus). Podendo-se considerar essa peça a
sublimação de sua vasta poética. A morte envolveu permanentemente Bispo,
mas não de maneira histérica, atormentada, e sim como a via inevitável
de conexão genuína com Deus, com toda a benevolência do artista que
criou para Deus.

Arthur Bispo do Rosário morreu em 1089, e
seu acervo é conservado no Museu Bispo do Rosário de Arte
Contemporânea, localizado onde era a instituição Colônia Juliano
Moreira, no Rio de Janeiro.
Revisado por Luisa Bertrami D’Angelo