Apesar de estudos confirmarem a eficácia do tratamento, ainda vemos centros de atenção psicossocial (CAPS) demitindo em massa clínicos de orientação psicanalítica
Em 1784 o rei Luiz XVI nomeou uma comissão da Academia Francesa de Ciências
para investigar fenômenos de cura promovidos em nome do “magnetismo animal”,
certa forma de energia semelhante à eletricidade, presente nos corpos animados,
cujo desequilíbrio causaria doenças. Benjamin Franklin, Antoine Lavoisier e
Joseph-Ignace Guillotin, tendo à frente o biólogo Antoine Jussieu, concluíram
que as curas não podiam ser atribuídas aos procedimentos dos discípulos do
médico e magnetizador Franz Mesmer e que os conceitos mobilizados para
explicá-las eram inaceitáveis. Apesar disso algo acontecia. E mesmo que
isso fosse atribuído à sugestão ou ao hipnotismo ainda assim era obrigação da
ciência explicar como funciona este poder de transformar um fato da natureza por
meio de palavras.
Neste
tempo mudou o que chamamos de ciência e mudou o que chamamos de
psicanálise. A maior parte das novas objeções centra-se em estudos sobre
os casos clínicos originais mostrando seus defeitos e insuficiências.
Como se tomássemos a medicina do século 19 para ridicularizar seus
equívocos aos olhos de nossos critérios atuais. Até a década de 50 a
psiquiatria amarrava pessoas com autismo em cadeiras, mas isso não a
torna menos científica hoje.
Vem ganhando força a ideia de que a
psicanálise não é apenas uma ciência, mas possivelmente várias. Assim
como não podemos confundir a medicina com as ciências nas quais esta se
apoia (anatomia, físico-química, genética, fisiologia), não é preciso
imaginar que os fundamentos da psicanálise repousam em um único reduto,
tal como a hipótese do inconsciente ou a teoria da libido. Talvez o tipo
de cientificidade da psicanálise seja parecido com o da teoria da
evolução, não por sua afinidade com o naturalismo, mas porque ambas
tentam explicar uma gama muito grande de fenômenos, requerendo um
conjunto variado de hipóteses e, portanto, uma teoria da prova
diversificada. E sua teoria da prova remonta à combinação entre
evidências causais que se cruzam na prática do método de tratamento,
mesmo que oriundas de disciplinas diversas.
Então por que uma
prática amplamente instalada nos dispositivos de produção de ciência,
das universidades aos hospitais e centros de pesquisa, em quase todos os
países do mundo, prestando contas em revistas, congressos e
publicações, recebendo financiamento
público e privado para isso, é tão frequentemente questionada? Por que,
apesar de estudos independentes, promovidos por não psicanalistas,
confirmarem a eficácia do tratamento psicanalítico, ainda assim vemos
tradicionais Centros de Atenção Psicossocial (Caps) demitindo em massa
clínicos de orientação psicanalítica?
Não é pela ineficiência ou
pela cientificidade, que são usadas aqui apenas como abuso e exploração
do perpétuo julgamento moral da “coisa psíquica”, mas porque como
empreendimento a psicanálise é um péssimo negócio: não entra nos planos
de saúde, não permite que se explore e se empreite o trabalho dos
outros, não produz nenhum objeto, nem oferece um serviço padrão a ser
multiplicado, indefinidamente, de modo impessoal. No fundo continuamos
artesanais, no fazer e no formar, na ambição de justificativa pelas
regras do jogo científico e na defesa do método clínico. Mesmo que os
novos “Guillotins” queiram pensar de outra maneira.
A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5.
E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez
mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma
pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo
menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos
renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número
de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos
chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito
perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a
“normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.
A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
(Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de
300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com
desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou
doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem
sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas.
“Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade
persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de
seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas
fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis
para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento.
Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa
TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora
autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à
menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar
Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num
período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana,
durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo
feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não
ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana,
em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente
delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade
absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez
de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas
fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos
que me afetam não ocupem o texto inteiro.
Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas
pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem
precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições
anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a
quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem
costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração.
Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos,
saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte
pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo
perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa”
sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e
querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder
em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por
outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?
s
Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito
que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo
acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos
Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente
todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também
usado como referência no sistema de classificação de doenças da
Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é
ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena
sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um
novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão
feliz – e saudável.
O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen
Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual,
lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post
que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria.
Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera
as dez piores mudanças
da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o
momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e
ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.
Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter
transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova
patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e
atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios
frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à
patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances
talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos
não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu
medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e
inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas
décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o
Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo
e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo
deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria
engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o
público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e
sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar
um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no
uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis".
A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com
o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como
Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times
sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de
best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que
medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”.
Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não
direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a
atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos
displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como
anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que
desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade
limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada
dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o
temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.
Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é
pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que
vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e
mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de
psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E
assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como
nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e
implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e
compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição
das doenças mentais está intrinsicamente ligada a uma das indústrias
mais lucrativas do mundo atual.
Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de
“Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma
parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os
verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do
que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso
que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto
Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de
pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da
instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog
que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza
(do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no
consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação
objetiva em laboratório. (...) Os pacientes com doenças mentais merecem
algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo
sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens,
ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve
gerar controvérsias.
A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja
apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da
medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se
tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou
sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela
afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do
manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim
como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro
com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras
mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.
A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter
virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático
da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora,
quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a
tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há
chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto
um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para
vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que
permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É
preciso se espantar – e se espantar muito.
Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o
“normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um
companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza?
Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a
dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras
que o organizaram do que dos pacientes.
Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito
sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os
defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente
precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas
por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se
cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há
psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus
consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da
manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor,
lucrativo e persistente dos laboratórios.
Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao
considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual
poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de
que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é
mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se
tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode
compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão
às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha,
na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é
que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque
somos diferentes.
Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência,
ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre
essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da
cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se
trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e
“anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma
construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as
definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da
psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria
farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser
tudo.
E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a
uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que
construo para a minha vida.
Como é que a epidemia do Déficit de Atenção, que tornou-se
firmemente estabelecida em vários países do mundo, foi quase
completamente desconsiderada com relação a crianças na França?
Nos Estados Unidos, pelo menos 9% das crianças em idade escolar foram
diagnosticadas com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com
Hiperatividade), e estão sendo tratadas com medicamentos. Na França, a
percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas para o TDAH é
inferior a 0,5%. Como é que a epidemia de TDAH, que tornou-se firmemente
estabelecida nos Estados Unidos, foi quase completamente desconsiderada
com relação a crianças na França?
Déficit de Atenção em crianças francesas é inferior a 0,5% (Foto: Ilustração)
TDAH é um transtorno biológico-neurológico? Surpreendentemente, a
resposta a esta pergunta depende do fato de você morar na França ou nos
Estados Unidos. Nos Estados Unidos, os psiquiatras pediátricos
consideram o TDAH como um distúrbio biológico, com causas biológicas. O
tratamento de escolha também é biológico – medicamentos estimulantes
psíquicos, tais como Ritalina e Adderall.
Os psiquiatras infantis franceses, por outro lado, vêem o TDAH como
uma condição médica que tem causas psico-sociais e situacionais. Em vez
de tratar os problemas de concentração e de comportamento com drogas, os
médicos franceses preferem avaliar o problema subjacente que está
causando o sofrimento da criança; não o cérebro da criança, mas o
contexto social da criança. Eles, então, optam por tratar o problema do
contexto social subjacente com psicoterapia ou aconselhamento familiar.
Esta é uma maneira muito diferente de ver as coisas, comparada à
tendência americana de atribuir todos os sintomas de uma disfunção
biológica a um desequilíbrio químico no cérebro da criança.
Os psiquiatras infantis franceses não usam o mesmo sistema de
classificação de problemas emocionais infantis utilizado pelos
psiquiatras americanos. Eles não usam o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
ou DSM. De acordo com o sociólogo Manuel Vallee, a Federação Francesa
de Psiquiatria desenvolveu um sistema de classificação alternativa, como
uma resistência à influência do DSM-3. Esta alternativa foi a CFTMEA (Classification Française des Troubles Mentaux de L’Enfant et de L’Adolescent),
lançado pela primeira vez em 1983, e atualizado em 1988 e 2000. O foco
do CFTMEA está em identificar e tratar as causas psicossociais
subjacentes aos sintomas das crianças, e não em encontrar os melhores
bandaids farmacológicos para mascarar os sintomas.
Na medida em que os médicos franceses são bem sucedidos em encontrar e
reparar o que estava errado no contexto social da criança, menos
crianças se enquadram no diagnóstico de TDAH. Além disso, a definição de
TDAH não é tão ampla quanto no sistema americano, que na minha opinião,
tende a “patologizar” muito do que seria um comportamento normal da
infância. O DSM não considera causas subjacentes. Dessa forma, leva os
médicos a diagnosticarem como TDAH um número muito maior de crianças
sintomáticas, e também os incentiva a tratar as crianças com produtos
farmacêuticos.
A abordagem psico-social holística francesa também permite considerar
causas nutricionais para sintomas do TDAH, especificamente o fato de o
comportamento de algumas crianças se agravar após a ingestão de
alimentos com corantes, certos conservantes, e / ou alérgenos. Os
médicos que trabalham com crianças com problemas, para não mencionar os
pais de muitas crianças com TDAH, estão bem conscientes de que as
intervenções dietéticas às vezes podem ajudar. Nos Estados Unidos, o
foco estrito no tratamento farmacológico do TDAH, no entanto, incentiva
os médicos a ignorarem a influência dos fatores dietéticos sobre o
comportamento das crianças.
E depois, claro, há muitas diferentes filosofias de educação infantil
nos Estados Unidos e na França. Estas filosofias divergentes poderiam
explicar por que as crianças francesas são geralmente mais bem
comportadas do que as americanas. Pamela Druckerman destaca os estilos
parentais divergentes em seu recente livro, Bringing up Bébé. Acredito
que suas idéias são relevantes para a discussão, por que o número de
crianças francesas diagnosticadas com TDAH, em nada parecem com os
números que estamos vendo nos Estados Unidos.
A partir do momento que seus filhos nascem, os pais franceses
oferecem um firme cadre – que significa “matriz” ou “estrutura”. Não é
permitido, por exemplo, que as crianças tomem um lanche quando quiserem.
As refeições são em quatro momentos específicos do dia. Crianças
francesas aprendem a esperar pacientemente pelas refeições, em vez de
comer salgadinhos, sempre que lhes apetecer. Os bebês franceses também
se adequam aos limites estabelecidos pelos pais. Pais franceses deixam
seus bebês chorando se não dormirem durante a noite, com a idade de
quatro meses.
Os pais franceses, destaca Druckerman, amam seus filhos tanto quanto
os pais americanos. Eles os levam às aulas de piano, à prática
esportiva, e os incentivam a tirar o máximo de seus talentos. Mas os
pais franceses têm uma filosofia diferente de disciplina. Limites
aplicados de forma coerente, na visão francesa, fazem as crianças se
sentirem seguras e protegidas. Limites claros, eles acreditam, fazem a
criança se sentir mais feliz e mais segura, algo que é congruente com a
minha própria experiência, como terapeuta e como mãe. Finalmente, os
pais franceses acreditam que ouvir a palavra “não” resgata as crianças
da “tirania de seus próprios desejos”. E a palmada, quando usada
criteriosamente, não é considerada abuso na França.
Como terapeuta que trabalha com as crianças, faz todo o sentido para
mim que as crianças francesas não precisem de medicamentos para
controlar o seu comportamento, porque aprendem o auto-controle no início
de suas vidas. As crianças crescem em famílias em que as regras são bem
compreendidas, e a hierarquia familiar é clara e firme. Em famílias
francesas, como descreve Druckerman, os pais estão firmemente no comando
de seus filhos, enquanto que no estilo de família americana, a situação
é muitas vezes o inverso.
Um site com 926 livros em pdf. Há alguns seminário de Lacan, obras de Freud (inclusive a tradução nova da Cia das Letras) e de diversos filósofos! Muito bom! Recomendo!
A partir do final de maio, estará disponível a quinta e última versão do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). É de
esperar que, a partir de agora, um importante debate a respeito da
maneira com que as distinções entre normal e patológico foram
modificadas chegue à opinião pública.
Utilizado de maneira cada vez mais extensiva como padrão de reflexão
sobre a natureza do sofrimento psíquico, o DSM está longe de ter o
fundamento científico e isento que ele gostaria de nos fazer acreditar.
Influências de toda ordem entram em cena. Afinal, cada novo transtorno é
promessa de novos investimentos bilionários da indústria farmacêutica,
assim como garantia do aparecimento certo de verdadeiras epidemias
visíveis do dia para a noite graças à divulgação maciça pela imprensa
mundial e suas matérias de saúde.
Talvez isso explique ao menos um pouco essa verdadeira tendência de
"patologização da vida cotidiana" levada a cabo pelo DSM-5, que elevou o
número de patologias mentais a 450 categorias diagnósticas. Elas eram
265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2 (de 1968).
De fato, com modificações como as que diminui o luto patológico de dois
meses para 15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno
disruptivo de desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral
addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente
alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará
em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas
etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda experiência
de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo
sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira
compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de
normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de
uma normatividade disciplinar decidida em laborató- rio. Ou seja, uma
vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos,
contradições e reconfigurações necessárias.
Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o
resultado social destas modificações no campo da saúde mental
patrocinadas pelo DSM. Pois uma coisa é certa: há muito o que questionar
na eficácia de tais sobrediagnósticos. Basta lembrar como houve, de
2000 a 2009, um aumento de 60% no consumo de antidepressivos nos países
da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).
Nada indica que a taxa de depressão tenha diminuído.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de
filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na
Página A2 da versão impressa.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2013/05/1278102-a-producao-da-doenca.shtml